Valor econômico, v.19 , n.4582 , 04/09/2018. Opinião, p.A13

 

Assimetrias do sistema monetário

Luiz Gonzaga Belluzzo

04/09/2018

 

 

As moedas dos emergentes dançam ao ritmo da instabilidade cambial. O peso argentino e lira turca assumem a comissão de frente. Ancorado em reservas parrudas, o real brasileiro não escapa do bamboleio. Leio os especialistas midiáticos. Eles ensinam: os requebros do câmbio respondem aos frêmitos eleitorais dos mercados e aos rombos causados pela negligência fiscal.

Para escapar da mesmice, os interessados no assunto podem recorrer às transformações da arquitetura monetário-financeira global.

No sistema internacional "regulado", como o desenhado em 1944 em Bretton Woods, as regras do jogo eram as seguintes: taxas fixas, mas ajustáveis, de câmbio; limitada mobilidade de capitais; cobertura de déficits em transações correntes (problemas de liquidez) atendida por uma instituição pública multilateral.

No admirável mundo novo, países de moedas frágeis encontram-se diante do risco de uma procissão de desgraças

Câmbio e juros, nesse sistema, eram preços-âncora, cuja relativa estabilidade e previsibilidade eram vistas como essenciais para a formação das expectativas dos possuidores de riqueza envolvidos nas decisões de produção e investimento.

Em sua concepção original, o FMI deveria funcionar como um provedor de liquidez aos países com desequilíbrio de curto prazo no balanço de pagamentos. O artigo VII de seus estatutos - a chamada cláusula da "moeda escassa" - previa a adoção de controles cambiais em situações de agudo desequilíbrio do balanço de pagamentos.

Este modo de regulação tinha como objetivo impedir que condicionantes ou choques externos passassem a "disciplinar" a política econômica doméstica e a definir a trajetória das economias nacionais.

Nos últimos trinta anos, a desregulamentação dos mercados e a crescente liberalização dos movimentos de capitais entre as praças de negócios assumiram uma velocidade espantosa e introduziram a disciplina das bacanais.

Os regimes cambiais caminharam na direção de um sistema de taxas flutuantes. Tratava-se de escapar das aporias da "trindade impossível" ou seja, da convivência conflituosa entre taxas fixas, mobilidade de capitais e autonomia da política monetária doméstica.

Num movimento sincronizado, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial - em nome das chamadas políticas estruturais - dedicaram-se a pressionar os países da periferia com o propósito de obrigá-los, entre outras coisas, a eliminar os controles ou obstáculos à livre entrada e saída de capitais.

As palavras de ordem do "novo consenso" eram abertura comercial; liberalização das contas de capital; desregulamentação e "descompressão" dos sistemas financeiros domésticos. Um após outro, os países de moeda não-conversível promoveram a abertura financeira. Os ciclos de financiamento externo do final do século XX e início do XXI foram curtos e de reversão muito rápida. As economias emergentes ficaram, assim, expostas às ondas de otimismo e pessimismo inerentes aos mercados financeiros globalizados.

A primeira geração de "modelos de economias abertas" pretendia explicar as crises cambiais mediante convenientes relações de determinação: partiam dos déficits fiscais, caminhavam para o excesso de absorção (demanda) doméstica e terminavam no abismo dos déficits em conta corrente. A fuga de capitais e as bruscas e intensas desvalorizações cambiais, com impacto desastroso sobre a inflação e as finanças públicas, eram atiradas às costas dos governos gastadores e irresponsáveis.

Não há quem aprove ou recomende desatinos fiscais e monetários dos governos. Mas há quem ignore os desastres fiscais e monetários deflagrados no Brasil dos anos 80 e 90, no México em 94, na Ásia em 97, na Rússia em 98, na Argentina do doutor Cavallo em 2001. Todos causados pelas viradas de mesa dos provedores privados de financiamento externo.

Há moedas e moedas. O dólar é a moeda reserva. Denomina mais de 70% das transações comerciais e financeiras no mundo. O real é uma moeda não conversível. O amigo leitor já ouviu falar de alguma transação celebrada entre um exportador japonês e um importador alemão em reais?

Quando nasceu, o real precisou do amparo do dólar - a âncora cambial. Para ficar cravada no fundo do oceano ainda encapelado, na ressaca da hiperinflação, a âncora contou com a força da Selic, que entre 1995/1998 pagou 22% ao ano, em termos reais, para segurar o rentismo nativo nas fronteiras nacionais. Sacudida pelas crises do México, Ásia e Rússia, a taxa básica foi aos píncaros às vésperas da desvalorização de 1999. Na iminência do enfraquecimento da âncora, exorbitaram as taxas de juros. De nada adiantou, a âncora desgarrou-se.

Às vésperas da crise asiática de 1997/1998, a Coreia dispunha de condições fiscais impecáveis: superávit nominal de 2,5% e dívida pública inferior a 15% do PIB. A missão do FMI, encarregada de analisar a situação da economia coreana, teceu loas aos sólidos "fundamentos".

No Brasil dos maravilhosos anos 90, e na Argentina do mago Domingo Cavallo, a abertura financeira inflou os passivos externos e a dívida pública, facilitou as aquisições de empresas locais em todos os setores. O resultado foi a fragilização do balanço de pagamentos, a crescente imobilização da política fiscal e a subordinação da política monetária à alternância de otimismo e pessimismo nos mercados globais.

No admirável mundo novo, de ajustamentos rápidos e de alta volatilidade nos preços dos ativos, países dotados de moedas frágeis, com desprezível participação nas transações internacionais encontram-se diante do risco de uma procissão de desgraças. As desditas começam com as bondades dos mercados: valorização indesejada da moeda local, esterilização dos efeitos monetários da expansão das reservas com taxas de juro elevadas (impactos na dívida pública), déficits insustentáveis em conta corrente. As benevolências dos mercados terminam nas desvalorizações abruptas, elevação das taxas de juro.

O ex-economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard escreve: "Antes da crise, muitas economias emergentes adotaram o regime de metas de inflação. Isso era visto como o estado da arte no que respeita à política monetária... Esses países (no que se refere ao câmbio) se incluíam entre os "flutuantes". Argumentavam, continua Blanchard, "que os cuidados com a taxa de câmbio deveriam ser considerados apenas por seus efeitos na inflação. Não deram qualquer importância à taxa de câmbio como objetivo de política econômica. Mas os países (emergentes) têm razões para cuidar das taxas de câmbio. É importante dispor de instrumentos para afetar o nível e a volatilidade da taxa". Faloooou.

 

Luiz Gonzaga Belluzzo, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.