Valor econômico, v.19 , n.4582 , 04/09/2018. Legislação & Tributos, p.E2

 

Competição por dados pessoais

 

 

 

Paulo Casagrande

04/09/2018

 

 

A nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), sancionada pelo Presidente da República, é um marco relevante no desenvolvimento de um conjunto de regras jurídicas modernas para atividades empresariais que, cada vez mais, utilizam-se da coleta e do tratamento de dados dos consumidores.

Com a forte digitalização de processos produtivos e a disseminação de smartphones e outros objetos conectados à Internet, já é realidade o surgimento de serviços totalmente inovadores, bem como a constante melhoria e customização da experiência dos clientes de setores mais tradicionais da economia.

É para essa realidade que se pretende estabelecer um ambiente mais claro e seguro por meio da LGPD, que entrará em vigor no início de 2020. Dentre outras medidas, a nova lei prevê que cada indivíduo será titular de seus próprios dados e, como tal, terá por prerrogativa o livre acesso às suas informações pessoais coletadas e tratadas por empresas, bem como o direito à portabilidade desses dados para outros fornecedores de bens e serviços.

A lei têm o potencial de aumentar a rivalidade entre empresas que atuam em mercados nos quais o histórico do cliente é fator relevante

Essas regras têm o evidente potencial de aumentar a rivalidade entre empresas que atuam em mercados nos quais o histórico do cliente é fator relevante. Com base na LGPD, será mais fácil requisitar ao seu banco informações sobre anos de relacionamento para tentar melhores ofertas de serviços financeiros junto a outra instituição, ou para sua atual operadora de plano de saúde dados sobre eventos médicos pretéritos para estipulação de condições mais customizadas com um concorrente. Situações semelhantes podem ser vislumbradas na contratação de seguros, locação de imóveis, acesso a telecomunicações e internet, fornecimento de energia elétrica, alternativas inovadoras de mobilidade urbana e em novos serviços e mercados que ainda estão por ser estruturados.

A perspectiva de entrada em vigor da LGPD no futuro próximo traz tanto desafios quanto oportunidades às empresas. Por um lado, elas deverão se preparar para atender, prontamente, as demandas de seus clientes pelo acesso aos seus dados pessoais, sob pena de sofrer ações judiciais individuais e coletivas, bem como medidas administrativas pelos órgãos de proteção ao consumidor, os Procons. Por outro, poderão desenvolver estratégias para atração de novos usuários que tragam suas informações até então constantes exclusivamente nas bases de dados de concorrentes.

Nessas duas dimensões, o grau de eficácia da nova lei depende do estabelecimento de padrões de interoperabilidade, i.e., de regras mínimas de ampla aceitação para estruturação de informações, as quais provejam à empresa demandada segurança quanto ao cumprimento de seus deveres legais, bem como previsibilidade à organização receptora de dados pessoais. Ao longo do tempo, empresas estarão simultaneamente nas duas pontas de operações de portabilidade e, a fim de que estas ocorram em larga escala e a baixo custo, será imprescindível a adoção de critérios uniformes e razoáveis.

A LGPD prevê que tais padrões poderão ser estabelecidos pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), autarquia cuja criação, todavia, foi objeto de veto presidencial. Como amplamente reportado, o Poder Executivo pretende enviar ao Congresso projeto de lei ou mesmo medida provisória tendo por objeto a implantação da ANPD.

Trata-se de medida que se impõe, a fim de prover o suporte institucional necessário para plena eficácia das regras de livre acesso e portabilidade constantes na nova Lei, antes que esta entre em vigor em 2020. Ausentes padrões de interoperabilidade aprovados por órgão especializado, será muito mais custoso às empresas cumprir os mecanismos pró-concorrenciais previstos pela LGPD. Também os consumidores terão maiores dificuldades para fazer valer seus direitos, pois terão que enfrentar procedimentos diferentes a cada empresa e se socorrer do Judiciário caso não sejam atendidos. Ao longo do tempo, os diversos juízos e tribunais poderão adotar decisões dissonantes entre si, aumentando ainda mais a incerteza quanto à forma de cumprimento da lei. Por fim, start-ups e mesmo empresas já estabelecidas que venham a desenvolver serviços inovadores para atender clientes que tragam suas informações pessoais continuarão encontrando fortes barreiras à entrada por conta da ausência de padronização dos dados recebidos de concorrentes.

Paulo Leonardo Casagrande é sócio do Stocche Forbes Advogados, doutor em direito pela USP e Mestre em análise econômica do direito pelas Universidades de Hamburgo e Manchester

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