O globo, n. 31338, 26/05/2019. Sociedade, p. 36

 

Política de drogas

Audrey Furlaneto

26/05/2019

 

 

Especialistas veem retrocesso em lei que facilita internação forçada

Na contramão das políticas públicas que vinham sendo implementadas recentemente no Brasil, o governo de Jair Bolsonaro decidiu dar ênfase à internação como forma de tratar a dependência química e, agora, está prestes a autorizá-la mesmo nos casos em que não há o consentimento dos pacientes.

Um projeto de lei aprovado no Senado há dez dias, que aguarda apenas a sanção presidencial, estabelece a internação involuntária de dependentes químicos —a partir do pedido de um familiar, responsável legal ou até de um servidor público da área de saúde — e abre margem, por exemplo, para que populações de rua das chamadas “cracolândias” sejam recolhidas e encaminhadas a leitos hospitalares.

O texto altera a Lei de Drogas, de 2006, e outras 12 normas sobre o assunto. A aprovação do Senado ao projeto — apresentado nos idos de 2013 pelo então deputado e hoje ministro da Cidadania, Osmar Terra — acendeu o alerta de especialistas e órgãos ligados à saúde e aos direitos humanos. O Centro Brasileiro de Estudos sobre Saúde (Cebes) lançou nota pública na qual afirma ver “graves retrocessos nas políticas de drogas”.

O comunicado crítico foi endossado por mais de 70 entidades, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil. A internação involuntária não é novidade na legislação brasileira — estava prevista na Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2011. A diferença é que o projeto de Terra inclui a medida no âmbito da Lei de Drogas, autorizando sua solicitação inclusive por servidores públicos, embora um laudo médico deva sempre embasar a demanda.

Acelerando o processo

— Entendemos que a internação pode ser parte do processo, mas não o primeiro passo de um tratamento e, ainda assim, tudo depende de cada paciente. Com o projeto de lei, a internação passa a ser um primeiro recurso. Isso por si só já é grave, pode aumentar consideravelmente o número de pessoas internadas — alerta Paulo Aguiar, do Conselho Federal de Psicologia. O próprio autor do projeto confirma que seu texto facilita a internação forçada de dependentes químicos:

— Já existia, na Lei de Drogas, a internação compulsória (por mandado judicial). Na involuntária, é mais rápido o processo. Se não tem família, um assistente social ou um agente público que está ali cuidando daquela população pode pedir, e om édico, sempre ele, decide a internação— afirma o ministro Osmar Terra, em entrevista ao GLOBO.

— Sendo internado, comunica-se ao Ministério Público, que passa a acompanhar o caso. Ele vai ficar internado só paras edes intoxicar. É o início do tratamento. Seu projeto reverbera o que já fora previsto na nova Política Nacional sobre Drogas (PNAD), aprovada no final de abril. A tônica ali está no modelo da abstinência — segundo o qual o dependente químico deve se abster do consumo de drogas, caminho que prevê a internação —e não mais o modelo da redução de danos, um conjunto de estratégias para que o indivíduo reduza os riscos do abuso de drogas até, se possível, atingir a abstinência completa. A lógica da redução de danos, adotada pelo Ministério da Saúde, previa o encaminhamento dos pacientes para os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) Álcool e Drogas. Na avaliação de Terra, essa estratégia fracassou. Já o psicólogo Paulo Aguiar, do CFP, vê com preocupação a “lógica proibicionista”, que leva ao “encarceramento”.

— A liberdade individual está em risco, ainda mais quando uma lei diz que qualquer pessoa pode solicitar a internação. Essa é a lógica das Filipinas, de alguns estados americanos, como o Texas, que continuam tendo essa abordagem da internação e da abstinência.

Falta de leitos

Professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em história das drogas, Henrique Carneiro vê no projeto de lei um estímulo ao que chama de “indústria de internação”, que, segundo ele, não é possível no atual sistema público de saúde. Desde os anos 1970, com o movimento da reforma psiquiátrica, ele explica, lutou-se para que os pacientes fossem tratados fora de hospitais, inseridos em seus contextos sociais, o que resultou no fechamento de leitos psiquiátricos.

—O setor de saúde pública é incapaz de absorvera demanda de internação voluntária. E todos vemos com preocupação a ideia de fazer um higienismo social, removendo os chamados ‘indesejáveis’ das ruas — afirma o historiador. — É um ataque às liberdades fundamentais, além de ser um modelo ineficaz.

Para Carneiro, a internação equivale a um aprisionamento ,“sem sequer incluir os direitos dados a um preso comum ”.

— O que o governo cria é quase uma condição judiciária para facilitar um manicômio de pessoas que nem sem prefazem mal à sociedade. Não é porque usam drogas que incorrem em conduta violenta. Há um certo mito de que o crack e as drogas levam à violência, mas não necessariamente. Osmar Terra diz que seu projeto“endurece” apolítica de drogas no país e ressalta que as internações involuntárias seriam feitas apenas em hospitais, oque excluiria as comunidades terapêuticas do processo. Ele, porém, não detalha como resolvera falta de leitos.

— Tem que ter a vaga, tem que ir atrás, fazer uma pressão e criar. Se não, vai ter gente morrendo na rua, apodrecendo em vida, caindo de tudo o que é jeito, com Aids,ve ndendo o corpo para comprara próxima pedra. Tu achas que isso é uma condição humana?