Valor econômico, v.19, n.4614, 22/10/2018. Legislação & Tributos, p. E2

 

Reparação em crimes tributários

Ricardo Dantas

Pedro Sandrin

Rhasmye Rafih

22/10/2018

 

 

Recentemente a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu decisão no HC 399.109/SC no sentido de que configura crime contra a ordem tributária do artigo 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/90 a conduta de não pagar, dentro do prazo, o ICMS declarado regularmente (figura do débito declarado e não pago). E isso tanto nos casos de ICMS operação própria como nos casos de substituição tributária. A pena prevista para este crime varia entre seis meses a dois anos e multa.

Sem se adentrar ao mérito da decisão do STJ - em face da qual já houve recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF), que dará a última palavra; bem como porque é preciso que o Ministério Público evidencie ao menos o dolo de sonegação -, outra questão passará a merecer o cuidado e atenção dos criminalistas e principalmente de seus clientes: considerar a suspensão condicional do processo oferecida nos termos do artigo 89 da Lei nº 9.099/99 dos Juizados Especiais Criminais, quando se apurar crime contra a ordem tributária tipificado no artigo 2º da Lei n. 8.137/90, aqueles de "menor potencial lesivo".

A suspensão condicional do processo é um benefício concedido ao réu mediante o cumprimento de alguns requisitos de ordem objetiva (como a ausência de reincidência) e subjetiva (características pessoais do acusado). E dentre os requisitos objetivos está justamente a pena mínima prevista em abstrato para o delito, que não pode exceder um ano - hipótese dos crimes descritos no artigo 2º da Lei n. 8.137/90.

Preenchidos os demais requisitos, poderá ser então concedida a suspensão condicional do processo, quando o acusado será submetido ao cumprimento de algumas condições impostas pelo juiz, previstas no parágrafo 1º do artigo 89 da Lei n. 9.099. Ao fim do período de prova, a punibilidade do crime será extinta por decisão judicial.

Sucede que a primeira destas condições é a reparação do dano. Agora que o STJ pacificou entendimento no sentido de que o não pagamento de ICMS no prazo de vencimento do tributo configura crime contra a ordem tributária, em tese passivo de concessão da suspensão condicional do processo, será cada vez mais comum o oferecimento de tal benefício aos acusados pelo mencionado crime; proposta certamente acompanhada da reparação ao dano como uma condição para fruição deste benefício.

Fato é que os crimes contra a ordem tributária possuem peculiaridade em relação à reparação do dano. Aqui, a reparação do dano leva à extinção imediata da punibilidade, direito mais benéfico ao réu do que a suspensão do processo mediante o cumprimento de certas condições por um determinado período de tempo. Ademais, não faria sentido exigir a reparação integral do dano para a concessão da suspensão processual, quando a base do processo penal seria justamente a falta de pagamento do imposto já declarado.

Com base nisso, a 13ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo concedeu parcialmente ordem em habeas corpus impetrado contra a imposição da reparação do dano para a concessão da suspensão condicional do processo, conforme requisição do MP-SP. Assim afirmou o relator Augusto Siqueira, ao reverter a decisão de 1ª Instância: "Por fim, razão assiste aos impetrantes no que tange ao pedido de afastamento da reparação do dano, como uma das condições à suspensão condicional do processo. A exigência, no caso, afeiçoa-se desproporcional, pois a reparação do dano teria como consequência a própria extinção da punibilidade. Como prevista, na verdade e por via transversa, calha como impedimento incoerente ao benefício do artigo 89 da Lei nº 9.099/95".

A decisão é muito importante porque garante o direito do réu à suspensão condicional do processo em situação em que tal direito lhe seria privado, pois na maioria das vezes o inadimplemento do tributo se deu por insuficiência econômica da empresa (crise financeira); que não conseguiu arcar com todas as suas responsabilidades tributárias e não pela simples vontade de não pagar tributo (sonegação dolosa).

Portanto, naqueles casos, a impossibilidade de pagamento do tributo é fato intrínseco à própria existência do crime. Caso a empresa tivesse dinheiro para pagar o tributo, seu sócio sequer seria processado criminalmente pelo seu inadimplemento. Ou ainda, passasse a ter o valor do dinheiro posteriormente ao vencimento, poderia pagar o débito frente ao Fisco e ver sua punibilidade extinta, o que afastaria qualquer acusação criminal. Fosse mantida a condição de reparação do dano nestes casos, na prática, estar-se-ia a tolher um direito subjetivo do réu, o que seria inconstitucional e ilegal.

Frente a tudo isso, a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo representa importante garantia do direito dos réus em momento tão delicado do direito penal, quando cada vez mais os direitos e garantias legais e constitucionais são relativizados em favor da punição exemplar, mesmo que açodada, como se dá no mero inadimplemento tributário.