Valor econômico, v.19, n.4629, 13/11/2018. Opinião, p. A10

 

A indústria automotiva vai se transformar 

Regis Nieto 

13/11/2018

 

 

Acredite: nos próximos dez ou 15 anos, a indústria automotiva passará por mais transformações do que no último século. A Tesla, empresa especializada no desenvolvimento e produção de veículos elétricos, apesar de hoje vender somente um centésimo do que as maiores montadoras do mundo, já possui valor de mercado similar, uma vez que tem apostado em tendências futuras. Seguindo seu exemplo, as empresas automotivas também precisam se planejar para um momento de disrupção que bate à porta, estimulado por uma combinação de novas tecnologias e consumidores altamente conectados. As fórmulas tradicionais do setor não demorarão a deixar de funcionar.

Hoje, apenas 5% dos carros têm algum nível de eletrificação, cenário que mudará drasticamente até 2030, quando 50% dos veículos produzidos deverão ser híbridos ou elétricos. Essa transformação acelerada se dará em duas etapas. Inicialmente, o impulso virá da regulação, dado que ficará cada vez mais difícil bater as metas de emissão de poluentes apenas com motores de combustão interna.

O mais interessante vem depois - em meados de 2025, pelos cálculos do BCG -, quando a justificativa para a eletrificação passará a ser econômica: ao compararmos com os custos vinculados à combustão interna, ficará cada vez mais barato utilizar um carro elétrico. Tal mudança de panorama será impulsionada por motoristas de uso frequente e se expandirá, gradativamente, para aqueles com uso menos intenso.

É bastante provável que o carro do futuro desencadeie uma lógica de uso colaborativa, com veículos compartilhados. Sabemos que tanto a tecnologia elétrica quanto a autônoma aumentam o Capex (custo de aquisição), deixando os automóveis mais caros; ao mesmo tempo, ambas diminuem o Opex (custo por quilômetro rodado). Diante disso, a troca de um maior Capex por um menor Opex pode ser menos atrativa para ativos de baixa utilização, o que gera um cenário conflituoso, já que o carro é muitas vezes utilizado em menos de 10% do tempo.

Então o que poderia fazer essa conta fechar? A resposta está no compartilhamento, pois ele permite que o carro seja utilizado de maneira mais intensa e produtiva. Com carros elétricos, autônomos e compartilhados, temos uma perspectiva poderosa e economicamente viável, o que fortalecerá o racional para uma mudança de paradigma que, possivelmente, acontecerá de forma ágil em centros urbanos populosos e com sérios desafios de mobilidade urbana.

Realizamos uma série de simulações baseadas em pesquisas com consumidores, novos recursos tecnológicos e projeções dos custos de mobilidade. Levando em conta os diversos perfis de cidades, chegamos à conclusão de que o veículo autônomo, elétrico e compartilhado pode proporcionar despesas até 50% menores em relação ao convencional.

Isso se deve a uma série de fatores, como menor depreciação por quilômetro rodado, gastos com seguro reduzidos, menor custo da eletricidade em comparação à gasolina, menos manutenções, entre outras variáveis. Ao fazer um cruzamento de tudo isso com padrões e necessidades de mobilidade, estimamos que, em 2030, nas cidades com 3 milhões de habitantes ou mais, quase 100% da demanda poderá ser atendida de maneira lucrativa por uma frota desse tipo de veículo. Porém, em lugares com menos de 500 mil pessoas, dificilmente a demanda poderia ser coberta de maneira rentável para o investidor, tendo em vista o mesmo panorama temporal.

Esse processo de transformação depende das expectativas e do comportamento dos consumidores. O BCG entrevistou mais de 6 mil pessoas e as respostas mostram que, para os mais jovens, a substituição para a frota compartilhada é bastante atrativa. Estamos falando de um público na faixa dos 25 anos, que mora em grandes centros urbanos, tem altos custos relacionados ao automóvel próprio e considera desgastante o tempo que passa dirigindo - exatamente o perfil que dominará o mercado nos próximos anos.

A pesquisa revela, ainda, que a maioria (86%) dos consumidores espera uma série de vantagens desse novo padrão de mobilidade, sendo as mais citadas: menos acidentes (72%), tempo de produtividade maior (57%) e mais tempo para lazer (51%).

Está clara a amplitude da mudança em curso e isso, naturalmente, afetará também a lucratividade da indústria automobilística, cujo crescimento futuro da margem virá de pools de dinheiro hoje inexistentes. Fontes tradicionais de lucro provenientes de componentes clássicos, venda de carros novos, financiamento, aftermarket, etc ficarão estagnadas e serão substituídas por fontes emergentes como comercialização de componentes para carros autônomos e elétricos, venda de veículos elétricos, monetização de dados gerados pelo uso de automóveis conectados e serviços de mobilidade sob demanda, por exemplo.

Localmente, o risco é a crença de que essas novas questões são de responsabilidade única e direta da matriz. Acreditamos que não seja bem assim. Há uma série de problemas e desafios de mobilidade que precisarão ser resolvidos por aqui. Como converter os atuais obstáculos em oportunidades? Que produtos podemos desenvolver localmente e que viabilizadores serão necessários? De que forma podemos repensar a estratégia de vendas para o perfil desse consumidor digital brasileiro? Em um cenário com a entrada de tantos novos players intermediários, como me aproximar - e não me distanciar - do meu cliente?

A realidade brasileira traz uma série de desafios para uma revolução dessa magnitude na mobilidade, entre eles baixa qualidade e densidade de transporte público, problemas de infraestrutura (como qualidade do asfalto, má sinalização e ruas de terra) e uma enorme dificuldade de criar políticas e investimentos de longo prazo. Ao mesmo tempo, nossos consumidores estão entre os mais conectados do mundo - para se ter uma ideia, somos o segundo país em número de usuários do Uber.

Precisamos encarar essas particularidades com uma ótica estratégica e corroborar essa agenda de mudança tanto global quanto localmente. O ponto central é que tudo isso exige movimentação imediata. Quem ainda não está pensando em como se reposicionar e redirecionar esforços, sem dúvida, passará por períodos de intenso desequilíbrio nos negócios.