Valor econômico, v.19, n.4629, 13/11/2018. Especial, p. A12

 

'Este governo tem que ser diferente', diz Heleno

Fabio Murakawa 

13/11/2018

 

 

Noite de quarta-feira, 8 de novembro. A alta cúpula do Exército reúne-se no Hotel de Trânsito de oficiais no Setor Militar Urbano (SMU) de Brasília, para a festa de aniversário surpresa de seu comandante geral, o general Eduardo Villas Bôas, que faz 67 anos.

Militar reformado, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, chega sob forte escolta. Os jornalistas, proibidos de permanecer na porta do salão, são conduzidos para cerca de 300 metros dali. Ficam na escuridão, em um gramado isolado por grades, onde duplas de soldados armados controlam quem entra, quem sai e quem se aproxima.

Perto da meia-noite, após três horas de festa, o comboio de Bolsonaro deixa o local. A imprensa começa a se desmobilizar. Nesse momento, os faróis de um carro quebram a escuridão. "Está indo para onde?", pergunta o homem de cabelos brancos e com pronunciado sotaque carioca. Para a surpresa do repórter, quem lhe oferece carona é o general Augusto Heleno, 71 anos, indicado por Bolsonaro ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

O carro segue pelas ruas desertas do SMU e encontra uma ninhada de pássaros no meio do caminho. "Isso é quero-quero", diz Heleno. E lembra uma história, de quando havia acabado de assumir o comando de uma brigada no Rio. "Fui correr em volta de um campo de futebol e tinha um ninho de quero-quero, e o corpo da guarda via a pista toda", recorda, às gargalhadas. "Rapaz, os quero-quero começaram a me atacar, e eu com vergonha de dizer que estava com medo dos quero-quero."

"O presidente estava bem? Ele devia estar cansado, depois de tantos compromissos", pergunta o repórter sobre o estado de ânimo de Bolsonaro, que havia inaugurado seus compromissos naquele dia com uma visita ao comando da Aeronáutica, onde chegara às 7h50.

"Acho que ele dorme muito pouco. Às vezes ele dorme à meia-noite e passa zap às 5h30 da manhã", responde Heleno, que também comenta os tuítes de Bolsonaro no meio da madrugada. "Pois é, acho que dá uma inspiração nele, e ele vai lá e pá-pum."

Até a véspera, o general era cotado para a Defesa. Estaria empolgado com a nova função? "Eu sempre sou empolgado com aquilo que eu vou fazer. Tive muita sorte: são 45 anos no Exército, eu sempre fiz o que eu gostava. Para mim é mais uma experiência, uma experiência muito bacana", responde.

"E o senhor acha que o governo Bolsonaro vai ser mesmo diferente dos outros?", pergunta o repórter.

"Tem que ser diferente. Não pode continuar nesse negócio que está aí. É muita bandalheira, muita falta de vergonha, muita gestão desastrosa", diz Heleno. "O Brasil perdeu a capacidade de ser um país querido do seu povo. O cara tem que ter orgulho de ser brasileiro. Não pode encarar patriotismo, amor à pátria, como sendo uma coisa boba, irrelevante. A pessoa tem que gostar do país, não só na hora do futebol."

O esporte preferido do brasileiro aparece pela segunda vez na conversa. E vai permear os assuntos durante toda a carona, que dura cerca de dez minutos. O repórter nota que há uma expectativa muito grande da população em torno do governo Bolsonaro. "Isso é muito bom e ao mesmo tempo muito perigoso", diz Heleno, para depois citar o time de coração, que há anos vem montando esquadrões sem conquistar títulos relevantes. "A frustração de expectativa é igual a esse time do Flamengo aí..."

Ele conta que foi o Maracanã pela primeira vez aos 5 anos, com o pai. "Tenho um orgulho: eu jamais perdi um jogo do Pelé no Maracanã. Vi todos, todos", gaba-se. "Hoje eu estava brincando: se esse troço aí [governo Bolsonaro] der errado, a única coisa boa da minha geração foi ter visto o Pelé jogar. De resto, somos uma geração frustrada."

O carro atravessa a avenida W3, e o general sentencia: "O país está num estado lamentável. Uma divisão ideológica sem sentido, uma pregação, sabe? Principalmente em vocês, jovens. Uma pregação nefasta. Uma intolerância. Se você não for de esquerda, é fascista. Um negócio muito estranho."

Para Heleno, "quem fez a divisão do país entre nós e eles, ricos e pobres, negros e brancos, índios e não índios foi o PT".

Ele reconhece, porém, que "o problema da América do Sul é que as elites sempre ignoraram os mais pobres". "Isso é um absurdo. Eu acho que a culpa do que acontece na América do Sul é das elites. As elites sempre viveram para si e sempre ignoraram a desigualdade social", diz, antes de fazer o contraponto. "Mas isso não justifica partir para o outro extremo."

Para Heleno, será fundamental investir no Nordeste, que é o "calcanhar de Aquiles" do Brasil. "Você não pode continuar com um pedaço enorme do país vivendo de assistencialismo", diz. "É claro que tem que continuar com o Bolsa Família, é desumano acabar com o Bolsa Família. Mas tem que ter uma saída. Tem que dar condições de o cara viver dignamente."

O carro chega ao seu destino, no início da Asa Norte, onde vive Heleno. Ao se despedir, ele ainda fala sobre o Nordeste. Diz que é preciso concluir a transposição do rio São Francisco e incentivar o turismo.

"O Nordeste tem um potencial turístico estúpido. É muito melhor e mais bonito do que Côte D'Azur", diz ele, que viveu na França durante dois anos. "A Côte D'Azur só tem fama. A praia do Nordeste é que é bonita. A água é quente, coisa que não tem em lugar nenhum do mundo. Tem que ter uma saída, e o Nordeste é o grande centro de roubalheira do país."

____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

General tem ascendência sobre Bolsonaro 

Carla Araújo 

Andrea Jubé 

13/11/2018

 

 

Há mais de um ano o general da reserva Augusto Heleno começou a reunir, no subsolo de um hotel em Brasília, um grupo, por ele definido como 'gente de alto nível', para buscar soluções para o Brasil e formular o que poderia ser um governo do capitão reformado Jair Bolsonaro. O intuito nunca foi participar da campanha e sim da eventual gestão. "Programa de governo é uma farsa, se tivermos ministros competentes cada um vai fazer o plano certo para a sua área", dizia. Agora, a menos de dois meses da posse de Bolsonaro, Heleno está confirmado como ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e desponta como um dos principais conselheiros do presidente eleito e um dos mais influentes do novo governo.

"Não quero esse título. Não tenho essa pretensão, o presidente da República é o sujeito no mundo que mais tem conselheiros. Nunca disputei essa posição. Fui atleta a vida inteira, me acostumei a competir, mas esse é o tipo da relação que eu não tenho preocupação", disse ao Valor.

A relação de ambos remonta aos anos 70, quando o cadete Jair, oito anos mais novo, participava das aulas de educação física sob o comando do então tenente. Apesar de ser da cavalaria e Bolsonaro da artilharia, os contatos eram praticamente diários. Décadas depois, em uma reviravolta do destino, Bolsonaro, 63 anos, depois da posse, será comandante supremo das Forças Armadas. E será Heleno, aos 71 anos, quem baterá continência para o ex-capitão.

Mas a inversão de hierarquia não abala o respeito mútuo. Um oficial próximo a ambos disse ao Valor que Bolsonaro ouve com reverência os conselhos do general. "Ele levou reprimenda do Heleno", recorda.

Um integrante do gabinete de transição registra que, na semana passada, em uma das reuniões conduzidas por Bolsonaro em Brasília, era Heleno quem mais fazia intervenções, sendo ouvido atentamente. Estavam no grupo o senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), Gustavo Bebianno, e o ministro extraordinário Onyx Lorenzoni.

Apontado por seus pares como "um grande líder da sua geração", um dos poucos tríplices coroados - primeiro colocado nas turmas da Aman, da escola de aperfeiçoamento e do Estado Maior do Exército -, Heleno atua para calibrar a retórica inflamada do presidente eleito.

Segundo pessoas próximas, partiu de Heleno o conselho para que Bolsonaro reveja a decisão de transferir a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, ou de sair do Acordo de Paris sobre o clima.

Questionado sobre o assunto, diz que o tema deve ser tratado apenas pelo futuro ministro das Relações Exteriores. "Não é uma questão minha. Tenho cuidado com essas coisas, tenho muito chão de tapetão de Brasília. Não vou falar sobre isso".

A interlocutores, ele diz que o temperamento obstinado de Bolsonaro pode ser compensado pelo seu carisma, e acredita que muitas vezes o presidente eleito é incompreendido.

Heleno e Bolsonaro compartilham afinidades na formação militar: ambos são egressos do curso de paraquedismo.

Um general que convive com ambos disse que Heleno, instalado no Planalto, poderá se tornar o "Golbery de Bolsonaro", em uma alusão ao general Golbery do Couto e Silva, o poderoso chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI) dos primeiros anos do regime militar, e depois eminência parda dos governos Geisel e Figueiredo. Mas enquanto Golbery atuava nos bastidores, Heleno tornou-se uma figura midiática: na transição, é um dos quadros que mais interagem com os jornalistas.

A boa relação com a imprensa é atribuída à passagem pela chefia do Centro de Comunicação Social do Exército (Ccomsex). Ele exibe o smartphone com cerca de 400 mensagens de WhatsApp aguardando retorno. "Muitas são de gente se oferecendo para ser ministro", diverte-se.

O vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, reconhece a importância de Heleno no time, mas descarta uma relação de ascendência sobre Bolsonaro. "Heleno é admirado por aliar duas coisas fundamentais, preparo físico e intelectual. Mas não existe essa relação de pai e filho, existe a de gente comprometida com o futuro das novas gerações", disse ao Valor.

Ministro-chefe do GSI, o general Sergio Etchegoyen, relembra que também foi cadete de Heleno. "Heleno tem o respeito e admiração de gerações de oficiais que foram seus cadetes", afirma. Chefe de gabinete da Casa Civil, o general Roberto Severo Ramos, diz que o futuro titular do GSI é um "militar dotado de espírito conciliador, que será fundamental na condução harmônica das ações do governo".

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Estado laico vai exigir contenção 

Luísa Martins 

13/11/2018

 

 

"Essa historinha de estado laico, não. Este é um estado cristão", disse o presidente eleito Jair Bolsonaro durante discurso em Campinas (SP), no ano passado. Ele ainda nem era oficialmente candidato às eleições gerais de 2018, mas já dava sinais de que a religião permaneceria presente em seus atos oficiais de campanha - o que acabou por se confirmar inclusive em seu slogan: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".

Especialistas ouvidos pelo Valor afirmam que Bolsonaro ainda está respaldado pelo princípio da liberdade de expressão, sem violar a laicidade do estado prevista na Constituição. No entanto, uma vez empossado presidente da República - a diplomação será em 10 de dezembro - não poderá atuar fazendo da religião a bússola de seus atos públicos, sob pena de ter seus atos questionados no Supremo Tribunal Federal (STF).

"A existência ou não do divino é simplesmente dispensada. Embora o presidente tenha as suas crenças, ele não pode fazer com que elas ditem as regras institucionais", diz o professor da Escola Paulista de Direito Renato Ribeiro de Almeida, doutor em Direito do Estado e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político. Ele foi um dos primeiros autores a escrever sobre o chamado "abuso de poder religioso", que pode levar à cassação de um candidato se ficar comprovado que ele se beneficiou do "apadrinhamento" de algum líder religioso, como um pastor.

Em sua primeira aparição após o resultado do segundo turno, em que derrotou o petista Fernando Haddad, Bolsonaro juntou-se em oração com seus aliados - a prece foi transmitida em rede nacional. A análise da prática sob a perspectiva do estado laico é subjetiva: em princípio um ato particular, pode também ser interpretada como um aceno político à Frente Parlamentar Evangélica, bancada de força dentro da Câmara dos Deputados que o apoiou massivamente.

"Um político pode manifestar suas crenças religiosas particulares, mas, ao exercer um cargo público, não o faz apenas para a comunidade de fé à qual ele se reporta, mas para uma sociedade plural, em que cidadãos têm várias concepções. Não se pode instrumentalizar o cargo público para impor concepções religiosas particulares", diz a mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) Milene Cristina Santos, autora do livro "Intolerância religiosa: do proselitismo ao discurso de ódio".

Isso significa que, uma vez na presidência da República, Bolsonaro terá de mudar o discurso, segundo a professora e doutora em Direito Maristela Basso, da Universidade de São Paulo (USP): "Ele terá de manter a neutralidade e, como tem reiterado, governar para todos os brasileiros, com as mais variadas crenças. O presidente eleito vai ter de observar isso de forma categórica, porque nenhum deslize nesse sentido pode ser admitido."

Ainda em 2016, quando iniciava a construção de sua candidatura ao Palácio do Planalto, Bolsonaro - que se declara cristão e é casado com uma fiel da Igreja Batista - foi batizado no rio Jordão, em Israel, e divulgou a breve cerimônia em suas redes sociais. Ele também é simpático a pautas caras ao eleitorado evangélico, como a proibição do aborto, a criminalização das drogas e o fim do que chama "ideologia de gênero" nas escolas.

Para Milene, o fato de um político participar de um culto religioso ou receber uma bênção não fere a laicidade do Estado. "Mas se torna algo complexo quando o representante utiliza seu cargo para impedir outras manifestações religiosas, perseguir minorias religiosas ou evitar que certos temas sejam debatidos porque contrariam suas crenças particulares", observa. "Políticas públicas não podem estar amparadas apenas em argumentos religiosos, é preciso sustentá-las também com pesquisas científicas."

De acordo com a advogada constitucionalista Vera Chemim, os ritos de tramitação de um projeto de lei no Congresso, que passa por comissões especializadas na Constituição, existem para barrar eventuais iniciativas impropriamente baseadas apenas em fundamentos religiosos. Aliado a isso, há o fato de que garantias individuais não podem ser objeto de emendas constitucionais. "O direito de um indivíduo exercer livremente sua crença já é por tradição uma cláusula pétrea. Isso só pode ser mudado na hipótese muito remota de mudança de regime de governo, de um rompimento com a ordem atual que levasse à formulação de uma nova Constituição", diz.

O vice de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, chegou a sugerir a hipótese de reescrever a Carta Magna, mas o presidente eleito logo o desautorizou. Associado à ditadura militar por fazer referências positivas a Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador notável do período de repressão, Bolsonaro tem amenizado o discurso e dito que, durante seu mandato, será um devoto da Constituição Federal.

A religião do presidente eleito encontra amparos sutis na política, no Judiciário e no cotidiano de muitos brasileiros. A começar pela própria Constituição, em cujo preâmbulo está escrito que sua promulgação ocorreu, em 1988, "sob a proteção de Deus". Outro exemplo: em cada cédula de real, se lê a inscrição "Deus seja louvado". Além disso, salas de audiência e plenários de votação, como o da Câmara, ostentam um crucifixo ao fundo - quando não há também uma Bíblia sobre a mesa. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) considera que os símbolos não ferem o estado laico, pois não têm potencial de coagir cidadãos ou constranger aqueles que têm outras crenças, sendo apenas indicativos de uma sociedade majoritariamente cristã como a brasileira.

Entendimento semelhante teve o STF em setembro de 2017, quando, por 6 votos a 5, decidiu que a oferta do ensino religioso em escolas públicas não fere o estado laico, desde que a disciplina seja facultativa. O resultado do julgamento foi contrário ao que era esperado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que pedia a declaração de inconstitucionalidade da norma.

"O oferecimento de ensino confessional será permitido aos alunos para que possam exercer na plenitude seu direito subjetivo ao ensino religioso", disse na ocasião o ministro Alexandre de Moraes. "O Estado brasileiro não é inimigo da fé", votou o ministro Dias Toffoli, atual presidente do tribunal. Eles foram acompanhados pelos ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, formando maioria.