Valor econômico, v.19, n.4625, 07/11/2018. Política, p. A11

 

Moro demarca diferenças em relação a Bolsonaro 

André Guilherme Vieira 

Rafael Moro Martins 

07/11/2018

 

 

Em uma longa e inédita entrevista à imprensa, ontem, o juiz federal Sergio Moro demarcou diferenças com o presidente eleito Jair Bolsonaro, garantiu que não haverá perseguição a minorias no futuro governo e disse que, se depender dele, os movimentos sociais terão liberdade de manifestação. Mas Moro também defendeu o capitão reformado, dizendo que o discurso agressivo dele é "coisa do passado", endossou parte da agenda do militar, como a redução da maioridade penal para crimes graves e disse que será "um subordinado".

"Ainda que possa não haver uma convergência absoluta, nós podemos conversar e cada um ceder nas suas posições. Ele [Bolsonaro], evidentemente, dá a última palavra, a posição final é dele, e eu vou tomar a decisão se continuo ou não continuo [no governo]", disse. "As pessoas precisam ter tolerância sobre as opiniões alheias, saber que não são donas da razão. Sou uma pessoa disposta a ouvir e eventualmente mudar meus posicionamentos. Tenho bem presente que há uma relação de subordinação."

Ao longo de 1h45 de entrevista em que não nomeou Bolsonaro uma vez sequer - referiu-se a ele sempre como "presidente eleito" -, Moro disse considerá-lo uma pessoa "moderada" que não oferece riscos à democracia e ao estado de direito, que "não é consistente" classificar como terroristas movimentos sociais como MST e MTST e que irá apresentar ao Congresso uma série de medidas de combate à corrupção e ao crime organizado inspiradas nas dez medidas contra a corrupção e nas propostas elaboradas por instituições como a Transparência Internacional e a Fundação Getulio Vargas (FGV).

Moro também afirmou que irá convidar integrantes da Lava-Jato para auxiliá-lo, que boas operações policiais são as "que não fazem vítimas" e que, apesar de ser uma promessa de campanha de Bolsonaro, é preciso discutir de que forma será feita a flexibilização do porte e posse de armas para que eles não se tornem "fonte de armamento para organizações criminosas".

O procurador regional da República Carlos Fernando dos Santos Lima e o delegado classe especial da Polícia Federal (PF), Luciano Flores, podem integrar a equipe de Sergio Moro no ministério da Justiça a partir de 1.o de janeiro, disseram ao Valor duas fontes próximas do juiz federal. Flores é o atual superintendente-regional da PF no Mato Grosso do Sul. Foi ele o delegado que tomou o depoimento do ex-presidente Lula durante a condução coercitiva realizada pela Operação Alethea da Lava-Jato em março de 2016. Na ocasião Lula foi levado a depor em sala de Estado maior localizada no aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

Carlos Fernando está prestes a se aposentar no Ministério Público Federal (MPF) e atuou desde o início na força-tarefa da Lava-Jato no MPF de Curitiba, da qual se desligou no mês passado.

Luciano Flores é cotado para ocupar um dos altos cargos de direção na PF de Brasília, sendo, inclusive, um dos nomes cogitados para assumir a direção-geral da instituição - cargo atualmente ocupado por Rogério Galloro.

Já Carlos Fernando ocuparia posição no próprio ministério da Justiça, trabalhando diretamente com Moro. Ele é reconhecido pela experiência na negociação de acordos de delação premiado e de leniências na Operação Lava-Jato.

Em linha com Bolsonaro, o magistrado disse ser favorável à redução da maioridade penal para 16 anos no caso de crimes contra a vida e defendeu que a progressão penal seja "alterada" no caso de crimes graves ou mesmo proibida para integrantes de facções criminosas, além do endurecimento das penas contra o que chamou de "grande corrupção".

Moro abriu a entrevista, realizada no auditório do prédio da Justiça Federal em Curitiba, explicando que recebeu a primeira sondagem da equipe de Bolsonaro - feita pelo guru econômico do então presidenciável, Paulo Guedes - em 23 de outubro, a poucos dias do segundo turno, mas que só conheceu Bolsonaro pessoalmente em 1º de novembro, quando foi à casa dele, no Rio de Janeiro.

"Fui procurado por Paulo Guedes em 23 de outubro. Ele trazia uma sondagem acerca do meu interesse de compor o governo. Adiantei meu entendimento sobre esse tema, disse que só poderia tratar disso depois das eleições", disse o magistrado.

"[Bolsonaro] Me pareceu uma pessoa bastante ponderada. Ainda que não haja concordância absoluta, me parece ser possível chegar a um meio termo", ele argumentou.

A afirmação teve o aparente objetivo de afastar a suspeita de que o convite da equipe de Bolsonaro tivesse vindo antes de Moro tornar pública parte da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci, em 1º de outubro.

Em sua fala introdutória, Moro também procurou afastar a ideia de que o ministério seja uma espécie de prêmio pela prisão de Lula, que liderava as pesquisas de intenção de voto até ser impedido de disputar a eleição pela Lei da Ficha Limpa.

"[Aceitar o convite de Bolsonaro] Não tem nada a ver com o processo do Luiz Inácio Lula da Silva. Ele foi condenado e preso porque cometeu um crime, e não por causa das eleições", falou Moro. "Sei que alguns interpretam minha ida [ao ministério] como uma espécie de recompensa [por ter prendido Lula], o que é algo absolutamente equivocado. Não posso pautar minha vida com base numa fantasia, num álibi falso de perseguição política."

Moro disse que sua ida ao ministério "não é um projeto de poder", nem significa uma carreira política - ele voltou a dizer que não está em seus planos disputar eleições. Apesar disso, mostrou traquejos de político ao responder a uma pergunta sobre o caixa dois do deputado federal e futuro ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni com elogios - "Tenho grande admiração por ele, que foi um dos poucos deputados no momento [da votação] das dez medidas [contra a corrupção na Câmara] que defendeu a aprovação daquele projeto mesmo sofrendo ataques severos da parte dos seus colegas" - e a escapar pela tangente quando questionado sobre suspeitas que pairam contra Paulo Guedes - "Não conheço as investigações [contra Guedes], o que está nelas, mas o que tenho notícias é que são muito incipientes. Na atual fase, não é possível emitir juízo de valor."

Leia a seguir os principais pontos da entrevista de Moro:

Movimentos sociais

"É uma posição pessoal: as pessoas têm liberdade de manifestação e expressão, e não é diferente com movimentos sociais. Quando [as manifestações] envolvem lesão de direitos de terceiros, não se pode tratar os movimentos como inimputáveis. Mas qualificá-los como organizações terroristas não é consistente. Em nenhum momento se tem a intenção de se criminalizar manifestações sociais ou coisa da espécie. Não existe a menor chance de uso do Ministério [da Justiça e da Segurança Pública] ou da Polícia [Federal] para perseguição política."

Combate ao crime e à corrupção

"Vamos apresentar uma série de propostas legislativas para aprimorar o quadro legal contra a corrupção e o crime organizado. Estão sendo elaboradas, não tenho condições de adiantá-las nesse momento. Serão apresentadas ao presidente eleito, e vamos discutir de que forma isso será apresentado ao Congresso. Ideia é utilizar parte do projeto das dez medidas contra a corrupção [encabeçadas pelo Ministério Público Federal], e também resgatar em parte as propostas formuladas pela sociedade civil, pela Transparência Internacional e a Fundação Getúlio Vargas, as novas medidas contra a corrupção. Ideia é que sejam propostas simples e aprovadas num breve tempo. Medidas executivas também serão tomadas. A intenção principal é aproveitar a ideia de forças-tarefas, como na Lava-Jato não apenas contra esquemas de corrupção, mas também contra o crime organizado."

Progressão de regime

"A progressão deve ter um tratamento jurídico mais rigoroso. No Brasil existe uma, entre aspas, fraude legislativa. Se estabelecem no Código penas extremamente elevadas, mas que na prática não são reais. Uma pena de doze anos vira uma pena de dois anos em regime fechado. É o regime semi-aberto, hoje, é quase como uma ficção. Praticamente não existem estabelecimentos penais e, quando existem, a pessoa é autorizada a recolhimento [apenas] noturno. Quando não, a pessoa dorme em casa. Então, mais do que elevar penas, pode-se estabelecer critérios mais rigorosos de cumprimento."

Combate ao crime organizado

"O crime organizado é uma ameaça real e crescente no Brasil [com] organizações criminosas cada vez mais poderosas, e o Estado reagindo de uma maneira fraca. A estratégia de desmantelamento desses grupos passa por foco, recursos, equipes de investigação, prisão e isolamento dos líderes, confisco do patrimônio do crime organizado. No que se refere a confrontos, há uma necessidade de se repensar o tratamento jurídico, se o tratamento atual é suficiente ou não para cobrir situações em que o policial tenha eventualmente que disparar a sua arma contra um criminoso fortemente armado. Essa não é uma preocupação exclusiva do senhor presidente eleito, já foi externada por várias outras pessoas, inclusive no meio das Forças Armadas. Precisa ter um protocolo de como agir. Vai esperar ser alvejado por um tiro de fuzil para reagir? Tem que se analisar se essas situações estão ou não cobertas pela legislação atual de legítima defesa no estrito cumprimento do dever legal. Se não, cogitar uma solução jurídica para essa situação. Mas em nenhum momento se defende o confronto policial como estratégia desmantelamento dessas organizações criminosas. O confronto policial tem de ser evitado. A interferências policial é bem-sucedida quando ninguém morre, quando o criminoso vai preso e policial volta para casa seguro. Temos estatísticas terríveis de assassinatos de policiais absolutamente intoleráveis. O confronto até pode acontecer, mas é sempre indesejável. Podem acontecer vítimas, mas nunca é o desejo que isso aconteça."

Flexibilização do porte de armas

"Conversei a respeito com o presidente eleito. Existe uma plataforma eleitoral sobre a qual ele se elegeu que prega a flexibilização. Me parece contraditório agir de forma contrária. A questão é discutir de que forma isso será realizado. Externei minha preocupação de que o porte seja utilizada como fonte de armamento para organizações criminosas."

Maioridade penal

"Existe uma proposta de emenda [constitucional] que prevê a redução de 18 para 16 anos em casos de crimes graves, que tenham como resultado morte ou lesão corporal grave e casos estupro. O tratamento diferenciado para esse tipo de crime me parece razoável. Não resolve [o problema da] criminalidade, de fato. Mas existem questões relativas à justiça individual. A mudança é para fazer justiça nesse casos, mais do que uma redução da criminalidade. Mas essa é uma posição pessoal."

Pena após segunda instância

"Defendo a manutenção do atual entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o início da execução de pena após condenação em segunda instância."

Proteção a minorias

"Tenho plena convicção de que, a partir de 2019, as minorias vão poder exercer a sua liberdade sem riscos. Não vejo nada além de receios infundados, em relação a esse ponto. Estamos olhando pro futuro. Quais são as propostas do governo que afetam minorias? Do meu conhecimento, nenhuma. Se surgir alguma proposta mais discutível, neste aspecto, é plenamente possível abrir discussão. Existe política persecutória contra homossexuais? Não existe. Zero chave de isso acontecer."

Coaf e CGU

"O Coaf está mais relacionado à Justiça do que ao Ministério da Fazenda, a que está atualmente está vinculado. Sobre a CGU, é uma decisão de governo, não somente minha. Está sendo estudado. Não existe posição definitiva."

*Para o Valor