Valor econômico, v.19, n.4631, 16/11/2018. Opinião, p. A10

 

Política econômica e desigualdade de gênero 

João Costa Filho 

16/11/2018

 

 

O período em que nos encontramos, final de um governo, com a troca de representantes no Executivo e no Legislativo para o mandato que se inicia em janeiro do ano que vem, proporciona uma excelente oportunidade para que a discussão sobre qual é o Brasil que queremos ganhe corpo. Em que pesem as restrições impostas pela preocupante radicalização que vivemos, não é de hoje que o debate (nas suas mais diferentes esferas) apresenta certa miopia que teima em nos afastar das questões estruturais importantes para o nosso desenvolvimento econômico e social. Temos o costume de evitar assuntos "desconfortáveis".

A questão da desigualdade de gênero é um desses pontos delicados. Obviamente, um artigo de jornal (mesmo um acadêmico) não teria espaço suficiente para tratar desse tema de maneira abrangente e profunda. Neste artigo, a proposta é ressaltar um conjunto de mecanismos pelos quais, a partir da literatura que considera uma série de países em desenvolvimento, podemos desenhar programas que possam ser adotados por políticos nos mais variados pontos do espectro ideológico.

Como a política econômica poderia ajudar na redução da desigualdade de gênero? Primeiro, iremos circunscrever a análise à desigualdade no acesso à educação e ao mercado de trabalho.

Um interessante texto para discussão do FMI, escrito por Jain-Chandra, Kochhar, Newiak, Yang e Zoli em maio deste ano, intitulado "Gender Equality: Which Policies Have the Biggest Bang for the Buck?" pode nos dar alguma luz. Primeiro, compreendamos que, além das implicações de cunho social, a desigualdade empobrece a todos em um país. Todos. Não conseguir acessar oportunidades na educação ou no mercado de trabalho faz com que aqueles que são excluídos tenham menos incentivos para se capacitarem (já que se veem excluídos do jogo), resultando em uma menor produtividade destes, o que se desdobra em uma menor produtividade agregada. Quando lembramos que, no longo prazo, é a produtividade o que explica a diferença na riqueza das nações, percebemos o prejuízo para a economia como um todo.

De acordo com o estudo, o aumento dos gastos do governo com educação auxilia a diminuir essa diferença. Até aí, não parece ser uma grande novidade, mas é um resultado importante. Claro que temos toda uma agenda sobre a qualidade desse gasto (algo em que pecamos muito no Brasil), mas traz certo alento perceber que os recursos públicos, quando bem administrados, podem gerar bons frutos.

De maneira menos intuitiva, talvez, observamos no trabalho que as evidências apontam que os investimentos em saneamento básico também auxiliam as oportunidades na educação, reduzindo as desigualdades. Surge, portanto, uma boa diretriz sobre aonde deveríamos concentrar esforços, sem falar que metade dos domicílios brasileiros carecem de saneamento básico, uma agenda do século 19. Aliás, eles também melhoram as condições de acesso ao mercado de trabalho, assim como os investimentos em demais áreas da infraestrutura, diminuindo a desigualdade e proporcionando um canal "extra" para o aumento da produtividade dos fatores de produção em uma economia.

Quando todos estão sujeitos às mesmas regras, a percepção de um jogo justo incentiva a participação

A relação da rigidez no mercado de trabalho é um pouco mais curiosa. Para níveis muito baixos, uma regulação mais apertada auxilia na diminuição da desigualdade, ao passo que em níveis de alta rigidez, o efeito se esvai. Parece até intuitivo, de certa forma, porque em sociedades como a nossa em que o peso das tarefas domiciliares é assimétrico, certa proteção aos trabalhadores ajuda na participação no mercado de trabalho (oferece mais segurança frente ao alto custo de oportunidade que é deixar as tarefas de casa), o que pode ter desdobramentos interessantes na produtividade agregada, já que o prêmio pela qualificação pode gerar um incentivo para acumular o que os economistas gostam de chamar de "capital humano". Agora, se apertar demais, o(a) trabalhador(a) fica caro(a), prejudicando especialmente os menos qualificados (o que pode gerar o efeito contrário na produtividade total da economia).

O trabalho aborda outras questões como a gravidez na adolescência e a importância de direitos iguais, sem falar no ambiente institucional, especialmente no que tange a corrupção.

Combates à corrupção tendem a diminuir a desigualdade de gênero no acesso à educação e ao mercado de trabalho. Faz sentido. Quando todos estão sujeitos às mesmas regras, a percepção de um jogo justo incentiva a participação, o que motiva a qualificação e os efeitos já destacados desta na produtividade, via a redução da desigualdade.

No capítulo 23 do seu livro mais famoso (hoje, já que, na sua época ele era conhecido mais pela Teoria dos Sentimentos Morais), Adam Smith nos diz que o Estado deveria ter certo protagonismo nos gastos com infraestrutura (o autor ainda reforça que o financiamento desses gastos deveria ocorrer de maneira progressiva). As evidências parecem apontar que, ao seguirmos o conselho do "pai da economia moderna", poderemos não apenas aumentar a produtividade da economia e, com isso, experimentar taxas de crescimento econômico maiores (canal fundamental para o desenvolvimento econômico), como também poderemos dar um passo na direção de um arranjo social mais igualitário.

Dadas as sérias restrições orçamentárias e o imbróglio fiscal em que nos colocamos ao ignorá-las após décadas sem abordar os problemas estruturais da dinâmica dos gastos do governo, os nossos representantes poderiam privilegiar os gastos em infraestrutura e um melhor desenho do mercado de trabalho, (com leis que protejam o trabalhador, mas não desestimulem o emprego), além de reformas constitucionais (e infraconstitucionais) que tornem a dinâmica dos gastos mais sustentável.

Reformas como a da previdência (que também diminuem a desigualdade de renda), são cruciais para liberar espaços para esse tipo de empreitada. Longe de tomar o lugar do setor privado, pelo contrário, o orçamento público poderia ser desenhado para, a partir de regras horizontais e bem definidas, auxiliar as empresas privadas corrigindo falhas de mercado e, de quebra, diminuindo a desigualdade de gênero.

Há, portanto, uma agenda da infraestrutura, do arranjo institucional e do mercado de trabalho que poderia ser capitaneada por uma frente de trabalhos cujas fronteiras não sejam delimitadas pelas filiações partidárias, mas sim pelo interesse em debater as questões mais profundas do Brasil.