O globo, n. 31331, 19/05/2019. Economia, p. 31

 

O mercado da crise

Rennan Setti

19/05/2019

 

 

Administradores judiciais disputam a reestruturação de dívidas bilionárias

Se a crise devastou setores inteiros da economia, pelo menos um segmento não tem do que reclamar. A recessão acirrou a competição do bilionário mercado de administradores judiciais, que conduzem os processos de empresas em apuros que buscam nos tribunais proteção contra credores, uma espécie de trégua para retomar o fôlego e escapar da falência. Entre 2014, início da recessão, e o ano passado, 6.806 recuperações judiciais foram pedidas no Brasil, o dobro dos cinco anos anteriores, segundo a Serasa Experian. Hoje, os 20 maiores casos envolvem débitos de R$ 156,8 bilhões.

A lista vai das abatidas na Lava-Jato, como OAS e Sete Brasil, passando pela telefônica Oi, até casos recentes, como os da Saraiva e da aérea Avianca. A fila de casos cada vez mais complexos atraiu novos administradores, de líderes globais de auditoria a escritórios butiques, profissionalizando um serviço que costumava ser só uma atividade paralela de advogados e contadores. Uma das empresas que se consolidaram nessa área foi a consultoria multinacional Alvarez & Marsal, que está à frente da recuperação judicial mais ruidosa do momento, a da Avianca.

A companhia aérea deve cerca de R$ 3 bilhões, já perdeu quase toda a frota e enfrentou até uma greve de funcionários. A consultoria, que também está à frente dos processos da Livraria Cultura e da OAS, tem crescido 30% ao ano, com uma equipe de 30 profissionais. Eduardo Seixas, diretor da consultoria, vê no fato de a escolha do administrador ser exclusiva dos juízes uma limitação a essa expansão:

—O juiz pode nome arquem ele quiser. Não existe competição por preço, técnica. Essa é uma das dificuldades para atuar fora do eixo Rio-São Paulo. Sem ter relacionamento com o juiz, fica difícil ser nomeado. Acrítica nãoé unânime. Muitos especialistas argumentam que a relação de confiança entre juiz e administrador é essencial, já que o profissional atua como um assessor do magistrado na tomada de decisão.

O surgimento de um grande caso é sempre seguido de uma romaria de administradores ao gabinete do juiz para oferecer seus serviços. Há escritórios que usam até robôs para vasculhar os sites das varas judiciais em busca de oportunidades. A prospecção é facilitada ainda pelas relações entre os advogados, que sabem de casos que estão para surgir. Para conquistara confiança dos juízes, profissionais aceitam casos de pouca relevância e remuneração baixa. É comum até perder dinheiro em alguns processos.

— Para pegar o filé, é preciso roer também o osso — diz um advogado do setor. O filé, é claro, são casos grandes, com melhor remuneração. As dívidas de todas as empresas em recuperação e em falência no país somam atualmente R$ 283 bilhões, mas 55% desse valor referem-se só aos 20 maiores casos, segundo o secretário da Fazenda, Waldery Rodrigues Júnior.

Experiência abre portas

Um dos estreantes nessa áreaé oWald,An tunes, Vita, Longo e Blattner Advogados, escritório butique que costumava atuar apenas em resolução de conflitos e arbitragem. Ele foi fundado por Arnoldo Wald, um dos pioneiros da arbitragem. A entrada do escritório no mercado de administração judicial espantou a concorrência, diz a sócia Samantha Longo: de cara, assumiu a recuperação da Oi, cujos R$ 63,9 bilhões em dívidas a tornam a maior operação já feita na América Latina.

Ela conta que o juiz conhecia a carreira de Arnoldo Wald por seu pai ter sido aluno do advogado. No caso da Oi, tudo é superlativo. São 55.080 credores, em um processo de 370 mil folhas no qual foram firmados 41 mil acordos em mediação. Embora só uma assembleia de credores tenha sido realizada, ela durou 15 horas.

Precisou do espaço do Riocentro e ganhou apelido de rave. Inicialmente, o juiz Fernando Cesar Ferreira Viana, da 7ª Vara Empresarial, havia determinado que o Wald trabalharia em parceria com a PwC, mas destituiu a auditoria oito meses depois, afirmando que esta havia cometido “erros inaceitáveis”. O escritório chegou a ter 60 pessoas trabalhando diretamente no caso. Como o Wald continua recebendo mais de 150 telefonemas de credores por dia, precisou improvisar uma espécie de telemarketing interno para atendê-los. O trabalho, porém, é bem remunerado: o escritório recebeu R$ 99,3 milhões.

—Isso representa 0,15% do passivo, bem abaixo do limite legal — pondera Samantha, que, no auge do processo, trabalhou 15 horas por dia durante um ano e meio e sofreu com duas úlceras. Agora, o escritório pleiteia mais R$ 40 milhões ao longo do próximo ano, alegando ter subdimensionado o trabalho diante do ineditismo do caso. O MP deu parecer contrário ao pagamento extra, mas o juiz ainda não decidiu.

A lei determina que o administrador judicial pode receber, no máximo, o equivalente a 5% do total da dívida. Mas a tendência é que, em casos muito grandes, o percentual seja bem menor. Segundo o Observatório da Insolvência, estudo recém-lançado que analisou as recuperações judiciais realizadas em São Paulo, estatisticamente, há uma espécie de teto perto de R$ 4 milhões.

—Não uma regra, mas, ali, talvez, o juiz comece a achar que o administrador já está bem pago — disse Ivo Waisberg, da PUC-SP, um dos coordenadores do estudo. Uma vez nesse mercado, a experiência abre outras portas. Desde que assumiu a Oi, em 2016, o Wald foi nomeado para dois outros casos grandes: Grupo Galvão e Isolux.

Curso para profissionais

Para o promotor Leonardo Marques, que atua em casos de recuperação judicial no Ministério Público do Rio, a profissionalização trazida pela maior competitividade reduziu falhas nos processos. Mesmo assim, ele defende duas mudanças. Uma delas seria conferir aos credores o poder de substituir o administrador escolhido pelo juiz. Em 2014, o Tribunal de Justiçado Rio passou a exigir que seus magistrados escolham apenas administradores judiciais que tenham passado por um curso de especialização da corte. Um ano antes, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) havia apurado denúncias de favorecimento de parentese pessoas próximas a magistrados na administração de massas falidas lucrativas.

— Essa exigência se assemelha a uma regra europeia, é muito produtiva e tem contribuído para a profissionalização da administração judicial no mercado carioca— avalia o contador Gustavo Licks, à frente de casos como os da OSX e Sete Brasil. O governo federal defende mudanças nas regras de recuperação judicial, pois julga o mecanismo pouco eficiente hoje. No entanto, ainda não detalhou seu plano.

— O sistema recuperacional e falimentar no Brasil está muito abaixo do que poderia ser. Para cada R$ 1 em dívidas, nossa taxa de recuperação é menor que R$ 0,30. A média da América Latina é da ordem de R$ 0,45 — critica Rodrigues Júnior, secretário da Fazenda.

Os principais casos

Nos últimos cinco anos, 6,8 mil empresas entraram em recuperação judicial no Brasil. As dívidas acumuladas nos 20 maiores casos superam R$ 150 bilhões