Valor econômico, v.19, n.4633, 21/11/2018. Legislação & Tributos, p. E2

 

Judiciário "engarrafado''

Hugo Filardi 

21/11/2018

 

 

Certamente, uma das tarefas mais difíceis para o jurista é precisar, matematicamente, o limite do direito de demandar e o dever de não constranger indevidamente determinados jurisdicionados a, de forma despropositada, figurar no polo passivo de uma ação.

A cultura de buscar o Poder Judiciário para dirimir controvérsias é resultado de um lento processo de mudança de valores dos indivíduos que em muitas sociedades consideravam amoral o exercício do direito de ação.

Diante de um processo de civilização, não se poderia mais conceber que membros da sociedade não tivessem a quem recorrer para composição de situações jurídicas. A dinamização dos meios de comunicação e a evolução tecnológica trataram de eliminar as distâncias existentes entre os sujeitos de direito, tornando as relações jurídicas muito mais complexas e céleres. A tutela jurisdicional, por sua vez, deve acompanhar os anseios da população e cumprir o seu papel de poder equidistante e de distribuição de justiça.

Embora não se possa dizer que exista uma sociedade altamente politizada, a massificação das informações possibilitou aos jurisdicionados uma forçada consciência de seus direitos e imperiosidade de tornar um hábito a entrega da situação jurídica ao Poder Judiciário. Há, sim, uma sociedade de hábitos formados pelos meios de comunicação e não pelos educadores e formadores de caráter. Esse ponto nitidamente contribui para que haja uma profusão de assuntos hoje judicializados e que não precisariam, em condições normais, da intervenção do Judiciário em suas soluções.

O acesso à Justiça deveria servir para que a indignação popular motivasse o governo a dar concretude a normas constitucionais propositadamente programáticas, e não só para expandir a propagação de demandas meramente individuais e patrimoniais, que fomenta, por exemplo, a esdrúxula ideia de Judiciário como fonte de renda para os demandantes e aplicação da indústria do dano moral.

É curioso constatar, para dizer o menos, como uma pessoa vê seu semelhante jogado na rua sem qualquer apoio governamental sem se indignar e, no entanto, assiste ao poder estatal ser desvirtuado para atender a interesses "menos relevantes", por exemplo, com uma simples questão de falta de sinal telefônico brada por uma solução do Poder Judiciário obrigatoriamente com indenizações astronômicas.

Essa observação não significa, porém, querer impedir a prestação da tutela jurisdicional, mas tão somente vedar que seja usada de forma a torná-la desacreditada ou que sirva a direitos fúteis, em detrimento de situações jurídicas de relevante cunho social.

A explosão insólita de demandas temerárias sem qualquer filtro à prestação jurisdicional é completamente prejudicial ao alcance de uma justiça de qualidade e incoerente com os anseios do Estado Democrático de Direito. Permitir a propositura de demandas sem um mínimo de carga probatória ou até mesmo de lógica não significa atender ao comando constitucional de acesso irrestrito à tutela jurisdicional, mas sim violar os interesses da coletividade de explanação de uma justiça de alta confiabilidade.

Dentro da teoria de ponderação de princípios, verifica-se que a inafastabilidade da tutela jurisdicional e a vedação ao abuso do direito de demandar devem ser trabalhadas como colunas concomitantes que alicerçam a entrega da tutela jurisdicional adequada. O Judiciário deve ser receptivo ao jurisdicionado e possibilitar todos os mecanismos para exercício do legítimo direito de ação e, na contrapartida, identificar eventuais abusos que "engarrafam" as vias de prestação jurisdicional e medidas judiciais manifestamente utilizadas para, de maneira ilegítima, constranger desnecessariamente jurisdicionados em juízo.

O acesso à Justiça é uma garantia fundamental do jurisdicionado, ponto que não deve ser confundido em hipótese alguma com estímulo à litigiosidade exagerada. É necessário salvaguardar e lutar sempre para que os jurisdicionados possam, sem qualquer óbice injustificável, submeter suas pretensões ao justo crivo do Judiciário. No entanto, também em defesa da isonomia processual, deve-se buscar mecanismos de proteção ao jurisdicionado indevidamente demandado, impedindo que sua esfera de vontades seja injustificadamente incomodada.

Requerer que as demandas instauradas sejam submetidas a um juízo sério e prévio de admissibilidade, calcado em um mínimo lastro probatório ou em precedentes judiciais, conforme dispoe o Código de Processo Civil, não significa vedar o livre acesso à tutela jurisdicional, mas sim promover a defesa das garantias fundamentais do processo e a busca da atividade do Poder Judiciário, fundada nos princípios da moralidade, da legalidade e da eficiência, que lhe são constitucionalmente impostos.