Valor econômico, v.19 , n.4635 , 23/11/2018. Legislação & Tributos, p. E2

 

Geodiscriminação e direito do consumidor

Luciana Penteado

Alana Martinez Lose

23/11/2018

 

 

A era digital trouxe importantes mudanças para o mercado de consumo e, dentre elas, destacam-se as novas formas de celebração de contratos e possibilidade de comercialização de produtos e serviços por meio da Internet. No universo do e-commerce, as empresas prestadoras de serviços on-line podem, livremente, estipular preços para cada tipo de cliente. Todavia, essa diferenciação de valores muitas vezes enseja formas avançadas de discriminação de consumidores com base em suas características individuais, que podem ser fornecidas, obtidas ou assumidas.

Um exemplo disso é o uso de uma ferramenta popularmente conhecida como Cookies, que armazena as preferências dos usuários sobre um determinado site na Internet. Assim, de acordo com as informações obtidas sobre cada consumidor, o fornecedor pode "personalizar" os preços praticados em seu site. E isso só se tornou possível pelo surgimento de tecnologias e a expansão do Big Data, que oferecem às empresas novas possibilidades para a prática da discriminação de preços.

Quando um fornecedor leva em consideração a posição geográfica e/ou a nacionalidade do consumidor para manipular a disponibilidade de ofertas ou diferenciar preços, tem-se a chamada geodiscriminação. Isso significa que, aproveitando-se de tecnologias de análise de dados, os fornecedores podem submeter seus clientes a situações de consumo distintas.

(...)

Dentro da geodiscriminação, destacam-se duas práticas que vêm ganhando significativa atenção nos dias atuais. A primeira delas, chamada de "geo-blocking", é caracterizada pela negativa de ofertas a determinados consumidores. Isso ocorre quando, por exemplo, um consumidor brasileiro não tem acesso à determinada oferta que um consumidor de outra nacionalidade tem.

A segunda, conhecida como "geo-pricing", é identificada pela diferenciação de preços de acordo com a origem geográfica dos consumidores. Nesse caso, um consumidor brasileiro paga, pelo mesmo serviço, valor superior ao pago por um consumidor de outra nacionalidade.

Do ponto de vista econômico, há quem entenda ser a discriminação de preços algo justificável, levando-se em consideração, por exemplo, questões logísticas que encareceriam a entrega de produto a consumidores que residem em locais distantes.

Entretanto, considerando-se a prestação de serviços on-line, como a venda de passagens aéreas e de serviços de hospedagem, tal argumento não poderia ser utilizado para justificar a diferenciação de preços nesses casos. E é justamente por isso que as práticas de "geo-pricing" e "geo-blocking" são consideradas manipuladoras e injustas do ponto de vista jurídico, pois caracterizam uma diferenciação de tratamento dos consumidores.

Vale ressaltar, entretanto, que não há regulamentação específica que coíba a geodiscriminação, mas, com o intuito de resguardar seus direitos fundamentais, o consumidor brasileiro pode se valer dos ordenamentos jurídicos já existentes, como o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e a recém-sancionada Lei nº 13.709 de 14 de agosto de 2018.

O CDC não só estabelece como direitos básicos dos consumidores a igualdade nas contratações e o direito à informação, como também os protege de práticas abusivas e ilegais. No caso da geodiscriminação, a lei consumerista veda a recusa de venda de bens ou de prestação de serviços e a elevação injustificada de preços. Assim, não havendo justificativa plausível para o tratamento diferenciado dos consumidores, os fornecedores devem ser penalizados pelas práticas de geo-pricing e geo-blocking.

E não há que se falar que a vedação dessas práticas ofende os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, pois a livre estipulação de preços com o intuito de equilibrar o mercado não se confunde com a utilização da característica "localização geográfica" para a fixação de preços em detrimento do consumidor. Deve-se levar em consideração, também, que esses princípios não podem ser considerados absolutos, na medida em que estão sujeitos aos critérios para reconhecimento do abuso de direito.

Com o intuito de proteger os consumidores no mundo moderno do e-commerce, a Lei nº 13.709 surge como mais uma aliada no combate à discriminação dos consumidores, dispondo sobre a proteção de dados pessoais e alterando o Marco Civil da Internet. Sua principal inovação versa sobre o tratamento de dados pessoais, que deverá observar a boa-fé e alguns princípios importantes, como o da finalidade, adequação, necessidade, transparência, segurança e não discriminação.

É evidente que a ausência de regulamentação específica sobre geo-pricing e geo-blocking dificultam a incessante busca pelo equilíbrio nas relações de consumo. Em razão disso, a criação de uma lei mais imponente, sem sombra de dúvida, desempenharia um papel relevante na atenuação de quaisquer efeitos adversos decorrentes dessas práticas.

 

Luciana Penteado e Alana Martinez Lose são, respectivamente, sócia de contencioso e arbitragem e advogada na mesma área do Demarest Advogados

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