Valor econômico, v.19, n.4638, 28/11/2018. Finanças, p. C10

 

Renda extra de juízes supera o que 96% dos brasileiros ganham 

Fernando Torres 

28/11/2018

 

 

Após alguns dias de jogo de cena, mas sem surpresas, Michel Temer sancionou na segunda-feira o aumento de 16,38% na remuneração dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a despeito da desaprovação popular à medida e, mais do que isso, ignorando o rombo fiscal.

A consequência mais imediata é que mais alguns entre os cerca de 5% que aprovam seu governo, citando principalmente as ações do presidente na área econômica, devem se juntar à maioria da população (se forem coerentes).

Com a sanção, o salário mensal dos 11 juízes da mais alta corte do país subirá de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil. Ato contínuo, reajuste percentual semelhante deverá ser aplicado para magistrados nos demais níveis de carreira, provocando um conhecido efeito cascata com impacto considerável e duradouro - para não dizer perpétuo - sobre as contas públicas federais e de Estados que já têm as contas no vermelho.

Talvez não seja novidade para você que, mesmo antes do reajuste aprovado, os ministros do STF - e os juízes de forma geral - já estavam entre os 1% dos brasileiros que têm maior renda tributável advinda do trabalho no Brasil, conforme dados da Receita Federal. Não há nada de errado nisso.

Se acompanhou a discussão política dos últimos anos, talvez também já tenha se deparado com uma tabela, também produzida com dados do Fisco, que coloca "membro do Poder Judiciário e de Tribunal de Contas" como o tipo de ocupação que proporciona a terceira maior renda média tributável no país, ficando atrás apenas daquela auferida pelos titulares de cartório e da recebida pelos membros do Ministério Público - estes últimos, aliás, também tiveram reajuste de 16,38% aprovado, na esteira do aumento do STF.

O argumento de que o reajuste será compensado pelo fim do auxílio-moradia é complicado. Primeiro, porque não há garantia de que o auxílio vai acabar. Em segundo lugar, porque, como diz a própria associação de classe que representa os magistrados (com intuito de defender os dois pagamentos), não há nexo entre o reajuste e a existência do auxílio-moradia.

De fato, algo não deveria se tornar constitucional ou inconstitucional a depender de um reajuste salarial para determinada categoria.

Até porque, se formos admitir que o auxílio-moradia era salário disfarçado, os valores pagos acima do teto nos últimos anos teriam que ser devolvidos. Ou, no mínimo, o Imposto de Renda (IR) sobre o falso auxílio (tratado como pagamento indenização, e isento) deveria ser recolhido.

Mas fato é que a decisão do Congresso de aprovar o aumento do teto de salários do Judiciário e do presidente de sancionar são atos independentes de qualquer decisão sobre auxílio-moradia.

Defensores do reajuste recorrem também ao argumento de "remanejamento de verba" para sustentar a neutralidade fiscal da medida. Mas essa tese perde o sentido quando se considera que existe um déficit orçamentário de mais de R$ 100 bilhões por ano apenas na União - para não falar em Estados que até outro dia não conseguiam pagar os salários de servidores em dia.

Ora, se é possível reduzir qualquer despesa no Judiciário ou no MPF, o corte não deveria ser feito para acomodar um reajuste de salário daqueles que já estão entre os mais bem pagos do país. Mas sim porque é meritório cortar gastos desnecessários. Um orçamento com déficit crônico não tem espaço para aumento de despesas recorrentes.

Já a discussão sobre o valor absoluto que é pago, se é muito ou pouco para a qualificação profissional de ministros do STF e demais juízes, tem seu mérito. Mas apenas na teoria.

Claro que seria desejável que todos os servidores pudessem ter ótimos salários. Mas existe restrição orçamentária.

A questão é: engordar a folha de pagamento de juízes e procuradores é o melhor destino para os R$ 4 bilhões anuais que se vai gastar?

Não custa lembrar que ser servidor público é, antes de tudo, um ato de vontade. O setor privado pode acolher pessoas bem preparadas que quiserem remuneração maior.

O melhor argumento do lado dos juízes é o de reposição salarial. O reajuste aprovado, dizem, apenas compensa parcialmente o efeito da inflação ao longo dos anos em que o teto ficou congelado. Esse ponto é 100% verdadeiro. E parece razoável dizer que, sob a ótica individual, é injusto que se tire poder aquisitivo deles.

Mas isso não é obra do acaso. E sim uma política pública.

Deixar de corrigir os salários é a maneira mais eficiente - para não dizer a única - de conter a despesa com folha de pagamento de carreiras com estabilidade. E se os mais bem pagos não podem ser sacrificados para que o ajuste das contas públicas seja feito, de onde mais viria o dinheiro?

A maioria não deve ter feito a conta do que representa o reajuste concedido. Pense que a diferença bruta de salário mensal dos juízes será de R$ 5,5 mil. Apenas esse incremento é maior do que a renda mensal de 96% da população brasileira.

Ou seja, o "extra" que os juízes vão receber a partir do ano que vem é mais dinheiro do que 192 entre 200 brasileiros obtêm de renda total.

Num exercício, considere que, após IR de 27,5%, vão entrar R$ 4 mil limpos na conta por mês. Se investirem esse valor mensalmente ao longo de apenas dez anos, esses servidores conseguirão acumular uma reserva de R$ 587 mil em termos reais, capaz de assegurar uma renda mensal média de R$ 3,2 mil por 20 anos, além da aposentadoria a que já terão direito (o exemplo considera juro real de 4% ao ano no período de acumulação e de 3% na fase de pagamento).

Três vezes a renda que a maior parte da população brasileira vai receber na velhice.

Como convencer a sociedade de que é preciso fazer uma reforma da Previdência ampla se aqueles que estão no topo da pirâmide são os primeiros a garantir proteção?

Como explicar que até quem recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC) deve dar sua cota de sacrifício, desvinculando sua remuneração do salário mínimo, se os 1% mais bem pagos não podem contribuir?