Valor econômico, v.19, n.4656, 26/12/2018. Legislação & Tributos, p. E2

 

Ilegalidades envolvendo terrenos de marinha 

Ana Carolina Osório 

26/12/2018

 

 

A legislação define como terreno de marinha a faixa de terras com largura de 33 metros, contados da linha média das marés altas (preamar) do ano de 1831, para dentro do continente. Trata-se de bem de propriedade da União Federal, de tal modo que sua caracterização traz seríssima repercussão ao direito de todos que possuem imóveis à beira-mar.

O instituto foi criado na época do Brasil colônia, diante da localização estratégica destes terrenos para a defesa da costa brasileira. Atualmente mais de 500 mil imóveis no país estão classificados como terrenos de marinha, segundo levantamento realizado pela Secretaria de Patrimônio da União, gerando uma arrecadação anual de centenas de milhões de reais.

A definição exata, no solo, do local onde se encontra tal faixa de 33 metros de largura exige demarcação técnica, em processo administrativo complexo, e que deve contar com a participação dos particulares interessados, aqueles que constem como proprietários ou posseiros na faixa litorânea.

A faixa de 33 metros que se caracteriza como terreno de marinha tem por base o ano de 1831, sendo que em muitas partes do litoral brasileiro tal faixa se encontra total ou parcialmente submersa em razão do avanço das águas do mar, com redução das praias. Estudos geotécnicos comprovam uma diferença na ordem de até 100 metros na linha da maré alta atual, em relação à maré de 1831, quase 200 anos atrás. O contrário também pode ocorrer, é verdade, de tal modo que a faixa de praia pode ter se ampliado, em direção ao mar, por força da realização de aterros ou movimentação natural do solo, gerando os denominados terrenos acrescidos de marinha.

Se definida determinada área como terreno de marinha, o domínio particular ficará excluído, e a União passará a efetuar a cobrança anual pelo uso da área e pela transferência da propriedade, ainda que se trate de imóvel edificado. Poderá até mesmo, em tese, pedir a desocupação para dar-lhe diferente uso, salvo se houver concessão de aforamento ao particular, situação a ser tratada em outra oportunidade.

Ocorre que a União Federal vem cometendo abusos e ilegalidades a pretexto de definir as terras de sua propriedade na faixa litorânea, visando arrecadar taxas pela ocupação. E os cartórios de registro de imóveis, que poderiam coibir tal ilegalidade, submetem-se aos interesses da União Federal como se a mesma merecesse tratamento diferenciado no campo do respeito ao direito de propriedade. O devido processo legal não tem sido seguido pela União Federal, e sua observância não vem sendo fiscalizada pelos cartórios de registro de imóveis, gerando violação ao direitos de milhares de pessoas que residem na costa brasileira.

A Secretaria de Patrimônio da União, na maior parte do litoral brasileiro, define a posição da faixa de marinha unilateralmente e sem contraditório, à margem do que prevê a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional, e sem o rigor técnico necessário.

Essa mudança na propriedade só é possível mediante delimitação pormenorizada da suposta área de marinha, com a respectiva metragem, e com a comprovação de que o devido processo legal foi observado.

Olvidando-se das onerosas consequências que a demarcação acarreta ao particular, a União realiza verdadeiro arremedo na demarcação dos terrenos, partindo de uma linha presumida, com base na posição atual da linha de maré.

Aos cartórios, que possuem independência técnica de forma a garantir a confiança e veracidade nas informações relativas à propriedade imobiliária, é absolutamente vedado efetuar a alteração de propriedade de um imóvel registrado em nome de um particular, inserindo informação que se trata de terreno de marinha, salvo comprovação da existência de processo administrativo que tenha se revestido de todas as formalidades legais.

Afinal, em última análise, trata-se de ato de reconhecimento e transferência da propriedade, em favor de terceiro, ainda que parcialmente. Quando se faz constar na matrícula de um imóvel que parte do mesmo é de marinha, o que se faz objetivamente é formalizar que parte daquele bem não pertence mais ao particular, e sim à União Federal.

Dispensa-se ação judicial da União para a anulação do registro de propriedade em favor do particular, pois os títulos eventualmente existentes sobre o imóvel não são oponíveis à União, conforme Súmula nº 496 do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Não são raros os casos em que o Judiciário anula o procedimento de demarcação do imóvel e por conseguinte declara a inexigibilidade das taxas diante da inobservância das exigências legais mencionadas.

Urge que se estabeleça um regramento uniforme e consentâneo com a Constituição Federal e a legislação, sobre a inscrição de terrenos de marinha no registro imobiliário, e sobre os procedimentos de demarcação por parte da União Federal.

A demarcação por mera presunção, e sem a ampla participação dos interessados, viola o princípio da legalidade que rege a atuação da União, constituindo abuso de direito e ofensa à segurança jurídica e ao direito de propriedade.