O globo, n. 31324, 12/05/2019. Artigos, p. 3

 

Vidas não são moeda de troca

Ilona Szabó de Carvalho

12/05/2019

 

 

Quem ganha com o decreto 9.785, que foi assinado pelo presidente na última quarta-feira e expande o porte de armas? Posso garantir que não somos nós, cidadãos brasileiros. Já batizado de decreto da morte, a medida privilegia a indústria das armas e seu lobby, e ganham as milícias, as facções e a criminalidade armada, que se beneficiarão por meio de desvios e roubos de armamentos mais potentes. Em meio a tantas notícias ruins, posso dizer que essa é uma das mais graves.

Além de ilegal, o decreto é uma sucessão de irresponsabilidades e com potenciais consequências letais para a sociedade. Permite o porte de armas para 19 categorias aleatórias (caminhoneiros, deputados, moradores de áreas rurais etc.), aumenta o número de munições de 50 para cinco mil cartuchos por ano que podem ser vendidos ao cidadão, amplia o poder de fogo do armamento permitido para a população civil e retira mecanismos de controle ligados à venda de armas e munição — o que favorece os canais de desvios para a criminalidade.

Trabalho com o tema controle de armas há mais de 15 anos. Para além dos estudos e proposições do Instituto Igarapé, participei da mobilização da sociedade civil para aprovação da Lei 10826/03, conhecida como Estatuto do Desarmamento; trabalhei nas campanhas de entrega voluntária de armas e na do Referendo de 2005. Nessa época, debati em uma universidade carioca com o então deputado Jair Bolsonaro que, a exemplo de hoje, já usava frases de efeito, sem embasamento ou dados comprovados, e fazia de tudo para que a lei caísse.

Ao optar por reforçar privilégios de grupos de interesse privado, o atual presidente deixa claro que dentre suas prioridades não está a segurança pública, e ainda reforça a lógica dos “amigos do rei”, que supostamente dizia combater. A posse responsável de armas já é permitida por lei. As armas nascem legais, e há tecnologia para que sejam marcadas, assim como as munições, e rastreadas ao longo da vida útil. Porém, com o conhecimento que tenho sobre o assunto, é impossível defender o porte. Ao contrário do que uma minoria vocal tenta fazer crer, a maioria da população não apoia o armamento de civis e nem se sente mais segura com isso. A proibição do porte também facilita o árduo trabalho da polícia.

Esse tema vai muito além da questão das armas, uma vez que a visão e a condução da política de segurança pública serão o campo de batalha que determinará se caminharemos para um governo autoritário, que age fora da lei, ou se nossas instituições coibirão os excessos e defenderão nossa democracia. O monopólio do uso da força é uma das principais prerrogativas do estado democrático de direito, e a proteção dos cidadãos sua principal responsabilidade. O decreto, assim como a discussão sobre a ampliação do conceito de legítima defesa, abre perigosas brechas em direção a um caminho que pode não ter volta.

Declarações recentes do presidente também indicam que a proposta legislativa que quer permitir que policiais tenham salvo-conduto para matar pode ser estendida aos proprietários de terras em caso de “invasão”. Isso me faz lembrar a formação dos paramilitares na Colômbia e das milícias cidadãs na Venezuela, que surgiram com Chávez e hoje apoiam o governo Maduro. Estudei de perto essas duas histórias. Precisamos evitar a todo custo que se repitam no Brasil.

O decreto da morte precisa ser derrubado com máxima urgência. Precisamos nos mobilizar como sociedade para cobrar ação rápida e contundente dos Poderes Legislativo e Judiciário. Nossa agenda de propostas técnicas tem o respaldo de operadores da área de segurança pública e Justiça criminal e também do Exército. Foi construída com instituições e acadêmicos renomados no Brasil e no mundo. Já o decreto veio para ganhar poder de barganha em uma negociação com o Congresso. Mas vidas não são moeda de troca. Monitoraremos cada deputado e senador. Há de haver consequências, e elas não podem ser letais.