Valor econômico, v.19 n. 4642 , 04/12/2018. Opinião, p. A15

 

Restituindo a saúde pública ao público

Mariana Mazzucato

04/12/2018

 

 

O Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido completou seu 70º aniversário neste ano. Esta é, portanto, uma boa hora para refletir sobre o passado do NHS, como é conhecido o serviço por suas iniciais em inglês, e avaliar suas perspectivas futuras. O NHS é, há muito, fonte de inspiração nos debates sobre assistência médica no mundo inteiro. Mas, se não for colocado em bases mais sustentáveis, pode se tornar um caso de advertência, mais do que qualquer outra coisa.

Quando o NHS foi fundado, em 1948, sua missão, de oferecer assistência médica universal de alta qualidade, era arrojadamente radical. Com o passar do tempo, no entanto, passou a representar um pilar fundamental do Estado contemporâneo de bem-estar social, juntamente com a educação e com a atenção pública à idade avançada.

Atualmente, o NHS enfrenta desafios cada vez maiores, devido aos anos de "austeridade" que se seguiram à crise financeira de 2008, e também a mudanças de maior monta do modelo de negócios da indústria farmacêutica. Com a governança corporativa cada vez mais orientada em torno de estreitos indicadores financeiros, como lucros trimestrais, as empresas de medicamentos elevaram os preços dos remédios, e o NHS está arcando com os custos.

Para piorar, muitos medicamentos sequer existiriam sem o investimento público. No ano passado, o NHS da Inglaterra gastou 1 bilhão de libras esterlinas (US$ 1,28 bilhão) na compra de remédios que tinham recebido investimentos do Conselho de Pesquisa Médica do Reino Unido e de outros órgãos públicos. Nos Estados Unidos, o National Institutes of Health (NIH) gasta mais de US$ 37 bilhões por ano em pesquisa biomédica, especialmente em áreas que envolvem risco elevado demais para o setor público. E, no mundo inteiro, o setor público arca com estimados dois terços de todos os custos antecipados em pesquisa e desenvolvimento farmacêuticos.

Os efeitos dos elevados preços dos medicamentos podem contaminar áreas que extrapolam a de saúde pública no mundo inteiro. Criam, todos os anos, uma enorme barreira ao acesso de 2 bilhões de pessoas a remédios e empurram 100 milhões de pessoas para a pobreza extrema. Além do sofrimento humano, isso impõe altos custos econômicos. O capital humano perdido inclui não apenas os que são obrigados a deixar a força de trabalho tributável por doença pessoal como também os que precisam se ausentar para cuidar deles.

E, o que é mais decisivo, é cada vez mais difícil equilibrar as metas de assegurar o acesso do paciente a medicamentos eficazes, gerenciar os crescentes gastos com assistência médica e estimular a inovação. Mesmo se o acesso à assistência médica for garantido e a fixação de preços bem-administrada, haveria ainda o problema com a atual direção assumida pela inovação em saúde.

(...)

Doenças que não criam mercados com bom potencial de crescimento são, em grande medida, ignoradas. Entre 2000 e 2011, apenas 4% dos medicamentos recém-aprovados eram destinados a doenças negligenciadas, que afetam predominantemente países de renda mais baixa e de renda média. Já nos EUA, 78% das novas patentes concedidas entre 2005 e 2015 eram voltadas para remédios já presentes no mercado. E na Europa, entre 2000 e 2014, 51% dos medicamentos recém-aprovados eram versões modificadas de medicamentos pré-existentes e, portanto, não ofereciam qualquer benefício adicional à saúde.

Com os sistemas de assistência médica muitas vezes deixando de prover os pacientes com o tratamento de que necessitam a um preço financeiramente acessível para eles, e com uma inovação na área de saúde que não atende às necessidades da saúde pública, a atual situação não é sustentável. Mas restituir finalidade pública à prestação de assistência médica e à inovação exigirá o tipo de transformação que os fundadores do NHS prenunciaram 70 anos atrás.

Para esse fim, o primeiro passo é reconhecer o papel vital dos governos no desenvolvimento de novas terapias e de novos medicamentos. Em vez de se limitar a financiar a inovação, os governos têm de começar a dirigi-la com o mesmo nível de envolvimento que imprimem aos gastos dos equipamentos bélicos. Isso significa alinhar o financiamento das etapas de pesquisa mais ligadas à sua produção com as demandas no nível dos pacientes e com os objetivos públicos.

O setor farmacêutico argumentará que o envolvimento do governo sufoca a inovação. Mas foi uma atitude encabeçada pelo governo e pautada pelo espírito de missão que levou o homem à Lua, criou a internet. Os governos e as sociedades a que eles servem deveriam ser ambiciosos, ao mesmo tempo em que deveriam sempre formular a si mesmos uma pergunta prática: o que estamos tentando alcançar?

Assim que isso ficar claro, poderão ser aplicadas medidas no âmbito da legislação e de natureza regulatória para avançar objetivos coletivos e para estimular a experimentação de baixo para cima. Por exemplo, prêmios podem ser melhores que preços como estímulo ao investimento. E os processos de compra de produtos e serviços pelos governos poderiam ser mais bem alinhados a fim de orientar a direção a ser tomada pela inovação.

Mais especificamente, os formuladores de políticas públicas têm de enfrentar a financialização do setor farmacêutico, que se concentra apenas no valor de mercado da empresa, em termos de retorno aos acionistas, em vez de em todas as partes interessadas em sua atividade. Entre 2007 e 2016, as 19 empresas farmacêuticas que compunham o índice S&P 500, em dados de janeiro de 2017, tinham gastado US$ 297 bilhões na recompra de suas próprias ações a fim de aumentar o preço de seus papéis. Essa quantia corresponde a 61% de seus gastos em pesquisa e desenvolvimento no mesmo período.

Enquanto prevalecer esse modelo de negócios, a prática do sobrepreço permanecerá. Ficou muito difícil licenciar uma patente, e elas são, muito frequentemente, adquiridas mais por motivos estratégicos do que pela novidade que representam.

Para realinhar a assistência médica com o interesse público, ainda podemos encontrar inspiração no NHS. A missão de seus fundadores era criar um sistema que estivesse a serviço de todos, que fosse gratuito no nível da prestação e que atendesse às necessidades dos pacientes, e não à sua capacidade de pagar. Os atuais formuladores de políticas públicas deveriam reafirmar essa missão básica. Apenas alinhando a inovação com as prioridades de uma sociedade civilizada poderemos, finalmente, conduzir a assistência médica a um marco mais avançado. (Tradução de Rachel Warszawski)

 

Mariana Mazzucato é professora de Economia da Inovação e de Valor Público e diretora do Institute for Innovation and Public Purpose da University College London (UCL). Copyright: Project Syndicate, 2018.

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