O globo, n. 31321, 09/05/2019. País, p. 4

 

Porte de armas para milhões

Natalia Portinari

Gustavo Maia

Jussara Soares

Marco Grillo

Marlen Couto

Bernardo Mello

09/05/2019

 

 

O decreto do presidente Jair Bolsonaro pode aumentar de forma exponencial o número de pessoas autorizadas a carregar uma arma no Brasil. Atualmente, há somente 36,7 mil portes de armas válidos no país, segundo dados do fim de 2018. A amplitude do decreto pode levar esse número a vários milhões, uma vez que somente o total de moradores de áreas rurais com mais de 25 anos, por exemplo, é de 18,6 milhões.

Esta é a maior entre as 20 categorias que, com o decreto, não precisarão mais comprovar a efetiva necessidade de carregar uma arma para obter o porte. Estão no rol, entre outros, advogados (1,1 milhão, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil), colecionadores e caçadores (255 mil, segundo o Exército), políticos eleitos (65,1 mil, segundo o Tribunal Superior Eleitoral) e caminhoneiros autônomos (900 mil, segundo entidade da classe).

O número de portes de armas válidos no Brasil foi informado pela Polícia Federal via Lei de Acesso à Informação em janeiro deste ano. O número de registros de armas ativos é 678,3 mil, com 346,2 mil com pessoas físicas. Não necessariamente quem registra uma arma tem um porte válido para carregá-la consigo.

"Não é segurança pública"

O governo não poderia apenas mudar as categorias que podem portar armas via decreto. Para conseguir ampliar essa base, então, a solução foi determinar que, enquanto as demais pessoas físicas precisam comprovar a efetiva necessidade do porte à Polícia Federal, nessas situações, já se considera que esse requisito está cumprido, pela periculosidade da profissão ou de se morar em zona rural.

Ontem, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, evitou defender pontos do decreto. Sem se alongar sobre o assunto, Moro afirmou que a flexibilização do porte foi uma “promessa eleitoral”, mas não configura uma “política de segurança pública”:

— Questão do decreto não tem a ver com segurança pública. Foi tomada pelo presidente em função do resultado das eleições. Existem várias pessoas que entendem que é um direito (o porte), e isso está sendo preservado. Mas isso não significa delegação da segurança, evidentemente, ao cidadão privado.

Bolsonaro afirmou ontem que a “quebra do monopólio” para a compra de armas no Brasil é “bem-vinda” e vai entrar em vigor “dentro de uns 60 dias”. O decreto acabou com a restrição de importação de uma arma quando há no mercado nacional uma similar. A Taurus, empresa brasileira, era a maior beneficiada desse impedimento. Bolsonaro disse que conversou com o ministro da Economia, Paulo Guedes, “para tratar da questão de impostos, para que as armas lá de fora não cheguem bem mais baratas que as nacionais”.

Cargos transitórios

Para especialistas e entidades, o decreto deixa zonas cinzentas. Bruno Langeani, coordenador do Instituto Sou da Paz, lembra que o decreto ampliou a validade do porte — de cinco para dez anos — e o limite anual de munições, passando de 50 para até 5 mil no caso de armas de uso permitido. Medidas tão amplas de acesso às armas deixam margem, na avaliação do especialista, para desvios de equipamentos e armamentos:

— Esse aumento do limite de munição ocorreu sem exigência de contrapartidas para controle. Não há uma exigência de que essas munições sejam marcadas, com determinados lotes, coisas do tipo. Do jeito que está, você abre a possibilidade de desvios que abasteçam tranquilamente o crime organizado. O monitoramento fica mais difícil.

Langeani lembra ainda que algumas das categorias listadas para pleitear o porte de arma, como a dos conselheiros tutelares e dos políticos, têm ocupação transitória. Para o especialista, o decreto não deixa claro como se dará a fiscalização para evitar que a validade do porte exceda o tempo de exercício da função.

O especialista em Direito Penal Daniel Raizman, professor da UFF, teme que grupos paramilitares tenham maior respaldo legal, já que seus integrantes poderiam se enquadrar com mais facilidade em categorias com autorização para porte:

— Isso vai gerar problema em termos probatórios. Se você sabe que o tiro do policial vem necessariamente de uma arma padronizada, distribuída pela corporação, é uma coisa. Agora, se o policial pode andar com qualquer outra arma, isso pode criar uma dificuldade de fiscalização da origem de disparos em conflitos.

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Bolsonaro cria por decreto o ‘Estatuto do Armamento’

Francisco Leali

09/05/2019

 

 

Defensor do direito de o cidadão se armar, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que, ao editar o novo decreto sobre armas e munições, foi no “limite da lei”. Fez mais do que isso. O país que teve um Estatuto do Desarmamento aprovado pelo Congresso em 2003, agora tem um decreto que abre tantas brechas e concede tantos benefícios para a compra e o porte de armas que não seria de todo inusitado se viesse uma proposta para rebatizar a lei. Temos, por decreto, um estatuto do armamento.

Haverá quem diga que a edição do ato presidencial fere uma norma jurídica. Deu por decreto o que só uma lei, votada e aprovada pelo Legislativo, poderia conceder. Essa discussão ainda é o porvir. A partir, de hoje, no entanto, já temos uma nova regra em vigor.

Armas, antes de uso restrito de policiais e militares, agora podem ser compradas pelo que o presidente chama de “cidadão de bem” para se defender . Categorias profissionais que não tinham direito automático ao porte, agora terão . Policiais que não podiam usar a arma pessoal em serviço, agora podem. Agentes de segurança que apreenderem munições não tinham direito a pleitear o resultado do trabalho para si. Agora, terão preferência na destinação do que for apreendido.

Boa parte do que Bolsonaro incluiu no seu novo decreto vinha sendo objeto de discussão no Congresso. Ali, as propostas enfrentavam o ambiente do debate entre opositores e defensores da ideia. Por decreto, o presidente encurtou o caminho. Atendeu pleitos vários, alguns alardeados por um de seus filhos nas redes, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

O novo texto parece atender a fabricantes de armas, agentes de segurança e também o eleitor que copiava o candidato e usava os dedos indicador e polegar para fazer o gesto da arminha na campanha. E se parece tanto com o discurso de Bolsonaro que, inclusive, revoga ato do próprio Bolsonaro. O último artigo do decreto 9.785 revoga o decreto 9.685 de janeiro deste ano. A versão editada na gênese do governo não deve ter agradado por inteiro o presidente. Agora, Bolsonaro poderá dizer que tem um decreto com a sua cara.