Valor econômico, v.19, n.4644, 06/12/2018. Legislação & Tributos, p. E2

 

Limites da atuação do TCU

Marcelo Kokke 

06/12/2018

 

 

O cenário jurídico brasileiro convive com distorções no exercício das funções entre os poderes, em grande parte das vezes semeadas por mitos que de reiterada repetição assumem conotação de verdade. Alia-se às distorções uma equivocada perspectiva de institutos jurídicos como as súmulas, que se perdem em seu sentido de precedente e passam a ser lidas como se fossem regras jurídicas. Caso específico e sintomático de ambas as situações é o exercício do controle de constitucionalidade pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

O Tribunal de Contas não é um órgão jurisdicional. Nunca foi. Entretanto, em diversas decisões, vem ele a afirmar a possibilidade de exercer controle de constitucionalidade sobre decretos e leis. A sustentação está no mito de que a atribuição lhe foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Súmula nº 347. O enunciado da súmula afirma que "o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público". Assim, embora o Tribunal de Contas tenha seu desenho estruturado para ser um órgão de apoio e auxílio ao Poder Legislativo, sua atuação vem se conotando pretensão de conversão em órgão jurisdicional.

O problema é que, como toda súmula, a decisão do Supremo deve ser analisada diante dos casos que desencadearam a formulação do enunciado. E justamente a análise do precedente demonstra o mito que se construiu no Brasil há cerca de 55 anos, hoje a provocar polêmicas no próprio Supremo Tribunal Federal e na administração pública.

A Súmula nº 347 foi editada no ano de 1963. O principal precedente que a desencadeou foi o recurso em mandado de segurança nº 8372/CE, com decisão publicada em 1962. No cerne do caso que derivaria o enunciado aduzido como holding, o Supremo assim construiu a ementa do precedente: "Não ofende a direito líquido e certo o ato do Tribunal de Contas que nega registro a aposentadoria fundada em lei revogada. Recurso não provido". O STF reconheceu que o Tribunal de Contas pode negar aplicação de lei revogada, de lei que vai de encontro para com o supedâneo jurídico, conforme o voto do então ministro Pedro Chaves.

Um delegado de polícia havia sido aposentado irregularmente, considerando a legislação da época, fato que derivou ato do Tribunal de Contas a negar o registro da aposentadoria, em conformidade com decisão anterior do próprio STF. O caso não foi de decisão de inconstitucionalidade pelo Tribunal de Contas. No próprio julgado de 1962, o STF entendeu que "essa declaração escapa à competência específica dos Tribunais de Contas".

Em verdade, o STF proclamou que "há que se distinguir entre a declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta é obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos poderes do Estado". Ao não conceder a aposentadoria, o Tribunal de Contas não fez juízo de inconstitucionalidade, seguiu uma decisão do próprio STF afeta à matéria. Ao invés de abordar o precedente, para entender seu sentido, passou-se a simplesmente a repetir um enunciado feito há mais de 50 anos.

Uma leitura rasa da Súmula nº 347 e sem a abordagem do precedente veio a gerar interpretações totalmente dissonantes para com a orientação do próprio Supremo. Não aplicar normas reconhecidas como inconstitucionais pelo STF não é uma prerrogativa do Tribunal de Contas. Podem fazê-lo o próprio Tribunal de Contas assim como outros órgãos da administração pública, como se infere da Lei nº 9.784/99, em seu artigo 64-B. Mas em momento algum firmou o Supremo que há uma atribuição de declaração de inconstitucionalidade no precedente que gerou a Súmula nº 347. A errônea interpretação, sem levar em conta o precedente, levou à construção do mito.

O mito da atribuição de controle de constitucionalidade do Tribunal de Contas alavancou espaço para que o próprio órgão deixasse de atuar em sua função de controle na apreciação de contas e aplicação de recursos para se tornar um censor do mérito das opções legislativas do Parlamento. A matéria tem provocado abordagens recentes do Supremo Tribunal Federal.

No julgamento de Medida Cautelar em Mandado de Segurança nº 35.410, o ministro Alexandre de Moraes enfatizou com clareza que "é inconcebível, portanto, a hipótese do Tribunal de Contas da União, órgão sem qualquer função jurisdicional, permanecer a exercer controle difuso de constitucionalidade nos julgamentos de seus processos, sob o pretenso argumento de que lhe seja permitido em virtude do conteúdo da Súmula 347 do STF, editada em 1963, cuja subsistência, obviamente, ficou comprometida pela promulgação da Constituição Federal de 1988".

A Súmula nº 347 nunca pretendeu atribuir controle de constitucionalidade ao Tribunal de Contas. O estudo do precedente que a ela levou o demonstra. Cabe ao Tribunal de Contas, assim como à administração pública, reconhecer inconstitucionalidade já proclamada pelo Supremo Tribunal Federal. Órgãos e instituições possuem um campo próprio para operarem suas funções.

Marcelo Kokke é pós-doutor em Direito Público - Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), mestre e doutor em Direito pela PUC-Rio e procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU)