Valor econômico, v. 20 , n. 4782 , 29/06/2019. Política, p. A11

 

Juiz de caso Flávio Bolsonaro é conhecido pelo rigor extremo

Cristian Klein

29/11/2019

 

 

Na família do juiz da 27ª Vara Criminal do Rio, Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, responsável por julgar o caso do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), suspeito pelo Ministério Público do Rio de cometer peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa, ser desembargador é quase um cargo hereditário. Já exerceram a função o seu pai, avô, bisavô, trisavô e o sobrinho de seu avô por parte de mãe, Décio Itabaiana (1930-1992). A este último é atribuída a fama de julgar com um revólver sobre a mesa. "Ele era arbitrário, extremamente violento, não deixava os advogados falarem", recorda um experiente criminalista. O magistrado distancia o parentesco, por ser "em quinto grau na linha colateral", e diz desconhecer a história "pois sequer havia ingressado na magistratura quando ele faleceu". Formado em direito em 1989, sete anos depois de se diplomar em engenharia elétrica, Flávio Itabaiana é juiz desde 1995. Além de titular da 27ª Vara Criminal, Itabaiana acumula a função de juiz da 1ª Turma Recursal, espécie de segunda instância para crimes de pequeno potencial ofensivo, integrada por três juízes de primeiro grau. É um sinal de prestígio na carreira e um bom indicador para as chances de promoção a desembargador. Para o mesmo advogado que descreve o perfil de arbitrariedade de Décio Itabaiana, o primo distante e mais jovem "tem virtudes" e difere daquele que impunha temor ao portar arma em julgamentos: "O Flávio Itabaiana não é mal educado, não cerceia a defesa, é mais discreto. Também não faz conluio com o MP".

No meio jurídico, Itabaiana é considerado um magistrado extremamente severo, "punitivista" e "muito conservador", qualificam advogados consultados pelo Valor. "O juiz pensa que é Deus. O desembargador tem certeza de que é. E ele já está achando que é desembargador", afirma um deles. "O nome tem um peso enorme, negativo, na história do Judiciário fluminense", afirma João Tancredo, secretário-geral do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH). Tancredo defendeu parte dos 23 ativistas julgados por participação em manifestações de rua em 2013 e 2014. Até hoje este foi o caso mais rumoroso de Itabaiana, que se indispôs com alguns dos principais atores envolvidos no processo, marcado por sessões tumultuadas.

Numa delas, expulsou réus e plateia que assistia à audiência por terem repetido o gesto de punhos cerrados, feito pelo então estudante de geografia da Uerj Igor Mendes da Silva. Condenado a sete anos de detenção, o ativista ficou preso por sete meses, em Bangu, até conseguir um habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Doutora e coordenadora da pós-graduação em filosofia da Uerj, a professora Camila Jourdan recebeu uma pena de 13 anos de prisão.

"Sou um juiz justo, que julga de acordo com a prova dos autos", afirmou Flavio Itabaiana

As sentenças severas levaram quatro deputados federais a entrar com uma representação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em reação, Itabaiana processou Chico Alencar (Psol-RJ), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Ivan Valente (Psol-SP) e Jean Wyllys (Psol-RJ) e pediu indenização por danos morais. Na ocasião, afirmou: "Está para nascer homem que irá me intimidar". João Tancredo, que defendeu Alencar, conta que Itabaiana recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) mas perdeu em todas as instâncias e foi condenado em abril a lhe pagar cerca de R$ 4 mil em honorários. O advogado, porém, diz que não vai cobrá-lo. "Teria esse crédito a receber. Mas não vou executar. É uma forma de cooperar para levá-lo à reflexão sobre esse comportamento", diz. Outro advogado, Marino D'Icarahy foi processado quatro vezes por Itabaiana, em decorrência de críticas e discussões durante o processo que envolveu os ativistas. Em sua opinião, Itabaiana é um juiz de "mão pesada", com "excessivo rigor persecutório" e decisões fundamentadas "com pouca técnica". "Há erros de dosimetria e ele não diferencia as condutas dos réus. Coloca todo mundo no mesmo saco. É um 'copia e cola' do Ministério Público", diz.

Em 2015, num processo de calúnia, da 1ª Turma Recursal Criminal, o magistrado julgou uma querela entre Renato Duque e Paulo Roberto Costa, ex-diretores da Petrobras. O voto de Itabaiana afirmava que "a decisão que rejeitou a queixa, [de Duque, deve ser] mantida pelos seus próprios fundamentos". No argumento sucinto, aparentemente tautológico, Itabaiana deixou uma marca - a de sentenças alegadamente pouco fundamentadas - que advogados apontam como típica do juiz. Na decisão, em abril, que levou à quebra dos sigilos bancário e fiscal do filho do presidente Jair Bolsonaro, e de mais 94 pessoas físicas e jurídicas, Itabaiana lançou mão das 87 páginas do pedido do MP fluminense e justificou a autorização em breve parágrafo. Econômicas e duras, as sentenças do magistrado são descritas como "atécnicas" e cuja fundamentação, frequentemente, remeteria às razões da acusação. "Ele tem no Ministério Público uma fonte de verdade absoluta", diz outro advogado.

Magistrado titular da 27ª Vara Criminal é filho, neto, bisneto, trineto e primo de desembargadores

Uma consequência dessa reputação seria a maior probabilidade de que decisões de Itabaiana sejam reformadas pelos tribunais superiores. No curto prazo, avaliam criminalistas, Flávio Bolsonaro pode ter dado azar ao cair na vara de um juiz "consequencialista", que quer "produzir punição a qualquer custo". Mas eventuais penas poderiam ser revistas. "Ser sentenciado pelo Itabaiana não é de todo ruim. O Tribunal [de Justiça], o STJ, o Supremo, já olham as sentenças dele de uma forma meio enviesada, com nariz torto. É o Itabaiana? Vamos ver o que dá para tirar", diz o advogado.

Itabaiana nega as críticas. "A afirmação de que eu tenho o hábito de prestigiar a acusação não é verdadeira, o que pode ser constatado pelas diversas sentenças em que absolvi o réu com o Ministério Público requerendo a condenação", rebate. O juiz cita o processo em que o MP pedia a condenação de nove réus - entre os quais o ex-diretor da Petrobras Jorge Luiz Zelada e o lobista João Augusto Rezende Henriques - mas sua sentença, em 2016, absolveu um deles, o ex-diretor da Odebrecht Marco Antônio Duran. O magistrado ressalta que sua condenação, por fraude em licitação, foi diferente do "tipo penal pretendido pelo Ministério Público", que se baseava em alteração contratual. "Sou um juiz justo, que julga de acordo com a prova dos autos", afirma. Num levantamento das decisões de Itabaiana, feito a pedido do Valor, em Turmas Recursais, é possível observar rigor nas punições - por exemplo a cambistas e apontadores do jogo do bicho - e a concisão de argumentos. O juiz alega que, no processo de Duque contra Costa, a frase em que justificava sua rejeição do recurso remetendo aos "próprios fundamentos" da decisão judicial anterior "não foi a única, mas, sim, uma das várias utilizadas" em seu voto, seguido por unanimidade pelas duas juízas do colegiado. Marino D'Icarahy afirma que o juiz costuma ser rude com serventuários e atribui esse tratamento a um alegado número excessivo de licenças médicas na 27ª Vara Criminal. Itabaiana nega. "Trato todos com urbanidade, inclusive réus e testemunhas. Não condiz com a verdade a afirmação de que a 27ª Vara Criminal tenha um índice de licenças médicas maior do que as demais varas do Rio de Janeiro, o que pode ser verificado diretamente junto à Corregedoria Geral da Justiça. A propósito, a última licença médica de um servidor da 27ª Vara Criminal tem aproximadamente dois anos", afirma.

O julgamento dos manifestantes foi o mais barulhento, mas Itabaiana considera "o processo da Ladeira dos Tabajaras" o mais difícil e trabalhoso de sua carreira. O caso foi denunciado por uma senhora, Dona Vitória (nome fictício), que filmou a atuação de traficantes de drogas de seu apartamento, em Copacabana. Em 2006, o juiz condenou nove policiais militares e 17 civis. O chefe da quadrilha recebeu pena de quase 49 anos de prisão. Pelo histórico de decisões de Itabaiana, um advogado afirma que, no caso Flávio Bolsonaro, "ninguém entenderá uma sentença absolutória", o que seria um "escândalo". Outros dois apontam demora nos processos conduzidos pelo juiz. João Tancredo não descarta algo diferente da expectativa, em razão de eventual "parcialidade ideológica" com o filho do presidente da República. Questionado se se sente pressionado a ser coerente com a sua biografia, Itabaiana refuta: "Não me deixo pressionar por nada nem por ninguém".