Valor econômico, v.20 , n. 4660 , 03/01/2018. Brasil, p A4.

 

Incra vai assumir a demarcação de terras indígenas

Cristiano Zaia

Arícia Martins

Daniela Chiaretti

03/01/2019

 

Os processos de demarcação de terras indígenas passarão a ser de responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão incorporado à pasta da Agricultura no governo do presidente Jair Bolsonaro. O Serviço Florestal Brasileiro (SFB), autarquia hoje ligada ao Ministério do Meio Ambiente, também migra para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). As duas decisões indicam conflito de interesses na opinião de indigenistas, antropólogos e ambientalistas. Exportadores de grãos temem que criem problemas para os negócios.

Um alto executivo do agronegócio disse ao Valor que a ideia de transferir as demarcações de terras indígenas e de quilombolas e os assentamentos rurais para o Ministério da Agricultura pode trazer problemas para as exportações de grãos e futuros questionamentos de importadores. "Vou ter que explicar isso lá fora", disse a fonte.

Pela Medida Provisória 870, publicada ontem no "Diário Oficial" e que dá a estruturação geral do governo Bolsonaro, a Funai é transferida do Ministério da Justiça, onde está desde 1991, para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A pasta é chefiada pela advogada e pastora Damares Alves.

O Incra ficará sob o guarda-chuva da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, assumida pelo ruralista Luiz Antônio Nabhan Garcia. Segundo a ministra da Agricultura Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, as questões fundiárias que envolvem terras indígenas, quilombolas e assentamentos ficarão com a nova secretaria, e o ministério de Damares Alves cuidará de políticas indigenistas.

Antes de assumir a Agricultura, Tereza Cristina presidia a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). "A entidade há anos manifesta entre suas prioridades desconstruir os direitos territoriais indígenas", diz um indigenista.

Até agora o processo de demarcação de terras indígenas começava com o estudo de identificação do território feito por antropólogos a pedido da Funai. Montava-se um grupo técnico especializado que realizava estudos de natureza etnohistórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, além do levantamento fundiário para a delimitação da TI. O grupo apresentava um relatório que seguia para aprovação do presidente da Funai. Depois seguia para o ministro da Justiça e, na última etapa, para homologação pelo presidente da República. Em todas as fases havia espaço para contestação.

Hoje há 235 terras indígenas com processos em tramitação no governo e que ainda precisam ser demarcadas. Este número engloba todas menos as que estão nas últimas etapas do processo, ou seja, as "homologadas" e "reservadas".

O Incra já faz a titulação de territórios quilombolas e cuida dos assentamentos da Reforma Agrária. "É tudo novo, o governo está começando. Mas temos uma conversa de fazer um Conselho Interministerial, que ainda estamos discutindo na Casa Civil, para tratar das demarcações", esclareceu Tereza Cristina. Ela procurou negar que a Funai esteja sendo esvaziada.

Nabhan Garcia é um dos conselheiros mais próximos de Bolsonaro. Ao Valor disse que o Incra contratará antropólogos para os processos de demarcação e que "a Funai não tem mais nada a ver com demarcação de terras indígenas". O Incra, disse, será o órgão técnico que cuidará da delimitação e identificação das terras. "Depois de delimitada a terra, o Conselho Interministerial irá apreciar", explicou.

Em dezembro, Tereza Cristina soltou nota dizendo que o Conselho Interministerial cuidaria de "demarcações ou conflitos de terras" e reuniria as pastas da Agricultura, Defesa, Meio Ambiente, Direitos Humanos e Gabinete de Segurança Institucional.

Quando presidia a União Democrática Ruralista (UDR), Nabhan defendeu a fusão dos ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura. A ideia chegou a ser anunciada pelo governo de transição, mas foi descartada diante de reações contrárias até de setores do agronegócio que temiam retaliações internacionais. Nabhan também defendeu que o Brasil se retire do Acordo de Paris. A ideia despertou forte reação contrária do agronegócio, indústria, cientistas e ambientalistas.

"A definição do Mapa como órgão responsável pelo reconhecimento de territórios dos povos indígenas e comunidades quilombolas representa inaceitável e inconstitucional conflito de interesses, mediante a subordinação de direitos fundamentais dessas minorias aos interesses imediatos de parcelas privilegiadas do agronegócio, parte diretamente interessada nos conflitos fundiários atualmente existentes", diz nota do Instituto Socioambiental, organização que há 25 anos trabalha com direitos de povos indígenas.

"Ainda mais se considerado que o dirigente responsável pelas temáticas é representante da UDR e dos grandes proprietários de terra", segue. "Isso indica que a estratégia de Estado não será orientada para o ordenamento do território e para a solução de conflitos mas para a concentração fundiária e a submissão do interesse nacional a interesses corporativos."

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse que a transferência de agências de sua pasta para outros órgãos do governo não representa um esvaziamento do ministério, mas questão de "coerência administrativa". O SFB cuida de florestas plantadas, o que dá alguma coerência à decisão. O problema é que é o órgão que opera o Cadastro Ambiental Rural (CAR). O instrumento revela passivos ambientais dos produtores rurais.

"O Serviço Florestal é o órgão responsável pela implementação do Código Florestal. Com a reforma, o setor regulado passará a tomar conta do órgão regulador. Pode parecer esperteza, mas vai arruinar completamente a credibilidade do agronegócio brasileiro diante de mercados e de investidores externos", reagiu em nota o Observatório do Clima, rede com 40 ONGs de temática climática.

Outra alteração comentada por Salles foi a criação do "licenciamento autodeclaratório", que "funciona muito bem" em outros países. "Não vamos dar licença às escuras", disse, avisando que o MMA irá aumentar a fiscalização.