Valor econômico, v.19 , n. 4666 , 11/01/2019. Política, p. A5

 

Chanceler implanta guinada antiglobalista

Daniel Rittner

11/01/2019

 

 

Em sua maior reorganização interna dos últimos governos, o Ministério das Relações Exteriores ganhou uma estrutura totalmente nova. Algumas áreas, como meio ambiente e apoio às comunidades brasileiras no exterior, perderam status. O departamento de imigração deixou de existir. Temas como direitos humanos e o relacionamento com as Nações Unidas passaram para a alçada da recém-criada Secretaria de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania - nomenclatura alinhada com o discurso "antiglobalista" do chanceler Ernesto Araújo. A assessoria de imprensa, principal canal de diálogo entre Itamaraty e veículos de comunicação, também foi rebaixada e não terá mais ligação direta com o gabinete do ministro.

A reestruturação consta de decreto publicado ontem que dá forma ao "novo Itamaraty" prometido pelo presidente Jair Bolsonaro desde a campanha. O número de subsecretarias (agora rebatizadas de secretarias por questões de uniformização com a Esplanada dos Ministérios) cai de nove para sete.

O Valor apurou que praticamente todo o primeiro escalão da pasta será composto por diplomatas sem experiência prévia na chefia de representações brasileiras no exterior. São nomes respeitados, de qualidades reconhecidas pelos colegas, mas fica evidente uma "mudança geracional" nos postos de comando da casa. Embaixadores mais experientes, na casa dos 60 a 70 anos e passagem por algumas das missões mais relevantes do país no exterior, perderão funções para as quais haviam sido designados.

Interlocutores do chanceler Ernesto Araújo afirmam que sua equipe mais próxima de auxiliares está fechada. São diplomatas mais jovens, na faixa dos 50 anos, como o próprio Araújo (51). Pedro Gustavo Wollny deverá assumir como chefe de gabinete. O embaixador Pedro Miguel Costa e Silva, hoje chefe do departamento econômico, ficará com a Secretaria de Negociações Bilaterais e Regionais das Américas. Ela cuidará do relacionamento com os Estados Unidos, com os países latino-americanos e toda a agenda do Mercosul.

Norberto Moretti deverá ir para a Secretaria de Política Externa Comercial e Econômica. Sob sua estrutura vão ficar o novo departamento de promoção do agronegócio e o departamento de organismos econômicos multilaterais.

Não está claro, no entanto, se o Itamaraty continuará liderando as negociações de acordos comerciais. O departamento responsável pelo assunto foi extinto e o decreto é evasivo sobre essa competência específica. A ideia do ministro da Economia, Paulo Guedes, era puxar mais atribuições comerciais para sua Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais - chefiada pelo economista Marcos Troyjo.

Outros nomes muito prováveis na cúpula do ministério são Kenneth Félix da Nóbrega na Secretaria de Oriente Médio, Europa e África e de Reinaldo Almeida Salgado na de Ásia, Oceania e Rússia.

Agora as atenções de voltam à escolha dos principais embaixadores no exterior. Para Washington, há dois cotados. Um é o cientista político Murillo de Aragão, da Arko Advice, que tem o apoio de militares. Nestor Forster Júnior, atual ministro-conselheiro da embaixada nos Estados Unidos, seria a preferência do ideólogo Olavo de Carvalho. Mas ele só poderia ser nomeado depois de eventual promoção sua para ministro de primeira classe - a partir de julho. Há quem defenda o ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi como tendo perfil mais adequado, de promotor dos interesses do agronegócio, ao cargo.

Entre servidores e diplomatas, uma das reações foi de contrariedade com o fim da antiga Subsecretaria-Geral de Meio Ambiente, que comandava as negociações sobre questões climáticas, como o Acordo de Paris. É uma área em que o Brasil vinha exercendo protagonismo nas reuniões internacionais e de onde veio um chanceler, Luiz Alberto Figueiredo, principal negociador da Rio+20 e ministro da ex-presidente Dilma Rousseff entre 2013 e 2014. A área caiu na hierarquia e tornou-se um departamento - cujas competências descritas no decreto não citam expressões como clima, mudanças climáticas ou aquecimento global.

A área ambiental sofreu mudanças profundas. O novo desenho é interpretado como retrocesso na agenda e recuo ao que existia em meados da década passada, quando clima e ambiente eram tratados sem destaque, junto com outros tópicos das Nações Unidas. É um golpe para o protagonismo dos negociadores brasileiros nas arenas climáticas internacionais.

O entendimento inicial é que a mudança climática está, agora, sob o guarda-chuva "proteção da atmosfera", junto com a camada de ozônio. A divisão do Mar, Antártida e Espaço migrou para o Departamento de Defesa.

"A mudança reflete o viés ideológico do novo ministro", diz Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima (OC), rede de 40 ONGs que tem a mudança do clima por temática. "A agenda do clima está órfã nos dois ministérios", segue, referindo-se ao Itamaraty e ao Ministério do Meio Ambiente. "O sumiço da agenda cria incertezas. Qual será o papel do país nos fóruns internacionais? Qual será a estratégia?", questiona.

"A realidade das mudanças climáticas é gritante e seus impactos já são sentidos em todo o mundo, inclusive no Brasil. Mesmo que hipoteticamente o MRE não tivesse uma área específica para tratar das mudanças climáticas, teria que criá-la imediatamente", diz o renomado climatologista Carlos Nobre. "Estar muito atento a este problema de longo prazo e atuar para reduzir riscos futuros é o que se espera deste e de qualquer governo".

"O Brasil abdica de um papel de destaque que vem ocupando desde 1972 nas negociações multilaterais de desenvolvimento sustentável - um dos poucos aspectos da cena internacional em que o país é líder nato", diz nota do OC. "A nova economia verde, defendida na Eco 92 e na Rio+20, encolhe para ceder espaço ao velho extrativismo mineral e ao agronegócio, reforçados na nova estrutura do Itamaraty, numa primarização da política externa", critica a nota.

No novo MRE também desce, na estrutura interna, a Assessoria de Imprensa do Gabinete. Era uma área para a qual os ministros sempre nomeavam um auxiliar de absoluta confiança, que atuava como porta-voz, mas agora ficará sob a Secretaria de Comunicação e Cultura. O decreto extingue ainda a antiga Subsecretaria de Comunidades Brasileiras no Exterior, voltada à organização do apoio consultar para os 3,4 milhões de cidadãos nacionais que vivem lá fora, muitos indocumentados. (Colaborou Daniela Chiaretti, de São Paulo)