Valor econômico, v. 19 , n. 4666 , 11/01/2019. Opinião, p. A8

 

Gênero e políticas públicas

Agnes de Aragão da Costa

11/01/2019

 

 

O tema gênero é espinhoso e talvez os novos governos, mais conservadores, não queiram abraçar uma bandeira tão polêmica. Mas eles têm muito a ganhar se optarem por trabalhar sobre aquilo que nos une enquanto sociedade e não sobre aquilo que nos divide.

A verdade é que muito pouco se sabe sobre o quanto as políticas públicas impactam a vida das mulheres. Avaliar o impacto de políticas públicas é um instrumento muito relevante para os governos porque permite que desenhem políticas cada vez mais eficazes e com maiores retornos para a sociedade e para o dinheiro público investido.

Talvez tenhamos mais informações nos setores de saúde, assistência básica, educação e segurança pública. Mas desconheço informações a esse respeito em setores como mobilidade urbana, agricultura, comunicações, ciência, tecnologia e indústria, orçamento público, entre tantos outros.

No setor de energia, conheço a avaliação de impacto do Programa Luz Para Todos, programa de universalização de acesso à energia elétrica que, entre 2003 e 2017 conectou mais de 3,3 milhões de unidades consumidoras às redes de energia elétrica no Brasil. Para quem não sabe, é um programa de universalização que, pelo seu porte e alcance, é referência mundial.

Em sua concepção, o Programa não tinha um "componente de gênero". Mas, em 2013, dez anos após seu lançamento, numa pesquisa de avaliação de impacto do Programa em que foram entrevistados 3.105 beneficiários em 26 Estados, resolveu-se realizar perguntas relativas a gênero.

O que se descobriu sobre o impacto do Luz para Todos na vida das mulheres foi o seguinte: com o acesso à energia elétrica, 7,5% das mulheres passaram a exercer alguma atividade e 9% das mulheres passaram a frequentar ou retornaram às escolas. Dos entrevistados, 82% declararam que acreditavam que as mulheres passaram a se sentir mais seguras depois do acesso à energia elétrica, em atividades como ficar sozinha em casa (79,2%) e andar por suas comunidades (47,7%). O acesso à energia elétrica também possibilitou que essas famílias saíssem de um mundo arcaico e sem eletrodomésticos. Identificou-se, então, que os eletrodomésticos que mais passaram a ajudar na vida das mulheres foram a geladeira (50,3%) e o tanquinho/máquina de lavar roupa (32%). E isso é relevante, se pensamos no quanto as mulheres podem contribuir como força de trabalho, mas também como pilar de valores para as futuras gerações, porque o uso de eletrodomésticos possibilitou que 57% das mulheres pudessem dedicar tempo a outras atividades antes negligenciadas, como ajudar o marido ou companheiro em outras atividades em suas propriedades e ajudar seus filhos com seus afazeres, além de outras atividades ou trabalho fora de casa.

Essa pesquisa é uma demonstração clara de que, mesmo que uma política não tenha sido desenhada com "componente de gênero", haja vista que essa é uma perspectiva que vem desembarcando recentemente na agenda de políticas públicas, pelo menos no Brasil, é possível avaliar as políticas existentes sob essa ótica e ver o quanto elas afetaram a vida das mulheres.

E por que é importante se perguntar qual é o impacto de políticas públicas sobre as vidas das mulheres especificamente?

Primeiramente, porque no Brasil 40% das famílias são chefiadas por mulheres, na maioria das vezes, sem um parceiro ou marido ao seu lado, ou seja, são muitas as famílias monoparentais em que os filhos podem contar apenas com a mãe. Todos nós conhecemos histórias de filhos bem-sucedidos que dizem dever tudo a suas mães que sozinhas os criaram e por eles sempre proveram. Então olhar para como as ações dos governos impactam as mulheres também é olhar para como a gente está tratando nossas futuras gerações para quem estamos construindo esse país.

Além disso, as mulheres no Brasil são consumidoras relevantes e, com isso, têm o poder de impulsionar a atividade econômica: as mulheres tomam 62% das decisões de compras domésticas no Brasil, e ainda dividem com os homens 34% dessas decisões, levando a questões de como empresas podem orientar suas estratégias de marketing para esse público, mas também de como políticas públicas podem endereçar práticas e padrões de consumo mais sustentáveis, e ainda como podem endereçar a melhoria da condição de vida das mulheres com vistas a tornar nosso mercado consumidor mais pujante, aumentando emprego e renda no país.

Não bastando isso, se os novos governos fizerem coisas muito simples como análise de impacto das políticas públicas sobre a vida das mulheres como foi feito no caso do "Luz para Todos", ou a previsão de "componentes de gênero" no desenho de novas políticas públicas, eles estarão alinhados com diversos acordos e compromissos firmados pelo país internacionalmente, como os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável firmados no âmbito das Nações Unidas. Isso abre portas para necessários recursos para o setor público, ofertados a baixo custo por organismos internacionais ou multilaterais de fomento, como o Banco Mundial ou o Banco Interamericano de Desenvolvimento, que apresentam tendência crescente a condicionar a concessão de financiamentos ou de recursos ao cumprimento de cláusulas relacionadas à inclusão e diversidade.

Muito se teme atualmente que, num cenário de costumes mais conservadores, as secretarias de governo dedicadas à mulher sejam esvaziadas por serem consideradas um ambiente de proliferação de ideologia de gênero.

Mas espero, pelo contrário, e em função dos evidentes pontos que apresentei acima, que esses novos governos, tão preocupados em dar maior eficiência ao uso de recursos público e ao funcionamento do Estado e tão preocupados com a busca de resultados e respostas para a sociedade, aproveitem a oportunidade para olhar para a mulher brasileira, a maioria delas, mães de família, trabalhadoras e donas de casa, como nenhum outro governo o fez antes.

(...)

Agnes Maria de Aragão da Costa é economista com mestrado em Energia pela USP e membro da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.