Correio braziliense, n. 20441, 09/05/2019. Política, p. 2

 

Acesso ampliado a armas de fogo

Leonardo Cavalcanti

09/05/2019

 

 

Poder » Decreto assinado por Bolsonaro facilita o porte de armamento para uma série de categorias profissionais e não só para caçadores, atiradores esportivos, colecionadores e praças das Forças Armadas. Especialistas em segurança criticam a medida

Ao longo da campanha — incluindo aí eventos de rua e o período que passou no hospital —, o então candidato Jair Bolsonaro (PSL) mimetizava, com as mãos, o uso de uma arma de fogo. O gesto foi repetido por eleitores e políticos do partido à exaustão, como um símbolo contrário ao Estatuto do Desarmamento. O que parecia óbvio que ocorresse acabou confirmado pelo agora presidente. Mas de maneira ainda mais radical. O Decreto nº 9.785, que regulamenta a posse, o porte e o comércio de armamentos, é mais amplo do que imaginavam até mesmo os apoiadores do capitão reformado. As regras publicadas no texto amplificam de maneira exponencial o mercado de revólveres, pistolas e munições, confirmando autorizações para 20 milhões de brasileiros. O resultado, caso a medida não seja derrubada pelo Judiciário, mostra que o lobby da indústria da morte venceu e ganhou um filão de R$ 20 bilhões, em números conservadores. Para se ter uma ideia da euforia da indústria, as ações da fabricante brasileira Taurus dispararam e, às 15h15, os papéis apontavam para uma alta de 19,19%.

Os números do tamanho do mercado identificado pelo Correio têm como base a quantidade de integrantes das categorias incluídas no decreto de Bolsonaro e o preço médio de um revólver .38: cerca de R$ 2 mil. A medida do governo federal inclui entre as pessoas autorizadas a comprar arma políticos, agentes penitenciários e de trânsito, advogados, jornalistas (que trabalhem na cobertura policial), caminhoneiros e residentes em áreas rurais. Esse último contingente, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), chega a quase 15 milhões de pessoas maiores de 25 anos — uma das exigências para o porte. Segundo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o número de profissionais em atuação chega a 1,1 milhão. Atualmente, levando em conta o contingente das Forças Armadas, da Polícia Militar dos estados, da Polícia Civil, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, de vigilantes de empresas privadas e guardas-civis estaduais, o Brasil possui um mercado aberto para a aquisição de 1,4 milhão de armas. Somente a Polícia Militar conta com 421 mil homens — 220 mil militares compõem as fileiras do Exército, e 118 mil, as polícias civis. Com as demais categorias, o número de pessoas aptas a comprar uma arma ultrapassaria 20 milhões.

Ontem, entidades de defesa de direitos humanos e especialistas em segurança se pronunciaram contra a medida, inclusive com a promessa de recorrer ao Supremo Tribunal Federal. O detalhe é que até quem é a favor da liberação se assustou com o teor do texto. Nos grupos de WhatsApp, delegados da Polícia Federal se disseram indignados com a medida. Na terça-feira, interlocutores do Planalto tentaram restringir o decreto. O lobby do setor de armamentos, porém, venceu de maneira inquestionável. “Abriram geral. Agora, pistolas, antes de uso restrito, passaram a ser permitidos (.9mm, .40), algumas carabinas de uso restrito poderão se enquadrar em uso permitido, e só vão segurar as armas automáticas e mais potentes”, escreveu um delegado da PF.

A questão é que o texto, segundo especialistas, invade a área do Legislativo e deve ser questionado em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). “O decreto tem enorme potencial de piorar a já grave situação da segurança pública no país. Por meio de um ato ilegal, que invade competências do Poder Legislativo, o presidente alterou muitos pontos das atuais regras de controle de armas”, reclamou, em nota, o Instituto Sou da Paz.

Lobistas

O decreto também multiplica por 100 o número de munições para civis, que hoje é de 50. Antes, a Polícia Federal avaliava a necessidade de liberação do porte — a partir do texto, a corporação só poderá negar o porte se provar que as informações do consumidor não são verdadeiras. Na prática, a tendência é de um aumento inevitável no mercado. Lobistas de empresas de armas estrangeiras que já atuam no Brasil se preparam agora para quebrar de vez o monopólio da Taurus, já capenga com licitações de corporações policiais.

O ex-secretário de Segurança do DF Arthur Trindade avalia que o decreto piora a situação da segurança pública no Brasil. “Essa lista amplia bastante o número de pessoas e tem dois grandes problemas. Primeiro: ao fazer isso, há uma alteração radical no Estatuto do Desarmamento. Eu tenho dúvidas de que esse nível de alteração possa ser feito por meio de decreto. E o segundo: faltam estudos que embasem a decisão”, diz. Ele aponta carência de fundamentos jurídicos e de uma avaliação de impacto. “Aumentam as chances de o cidadão sofrer uma morte violenta e alguns grupos são mais ameaçados: mulheres, com a violência doméstica; é suscetível a acidentes com crianças; suicídios; conflitos de trânsito.”

Trindade aponta consequências a médio prazo. “O número de armas extraviadas deve aumentar. Há uma grande ilusão de que as armas que existem na mão de criminosos são ilegais, mas quase todas foram adquiridas de forma lícita e, mais adiante, foram extraídas, passando para a mão de grupos criminosos”, ressalta.

5 mil

Quantidade de cartuchos que pode ser comprada anualmente por arma de fogo. Antes, eram 50

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A política noir

Luiz Carlos Azedo

09/05/2019

 

 

A política brasileira está parecendo um filme noir, gênero que fez muito sucesso nas décadas de 1940 e 1950, mas que somente foi reconhecido como tal após os anos 1970, consagrando detetives durões e anti-heróis dos antigos filmes policiais. Coube ao crítico francês Nino Frank a classificação do gênero, inspirada no expressionismo alemão e nas pinturas do barroco Caravaggio, cuja técnica claro/escuro era considerada noir (preto, em francês).

A atmosfera do filme noir era caracterizado pela iluminação em três pontos: uma fonte de luz para estabelecer as sombras, outra para o contraste com o negro e a terceira, cinzenta. O forte grafismo expressionista era garantido por escadas, persianas, portas e janelas entreabertas e grades de prisão. O Falcão Maltês (1941), Pacto de Sangue (1944), À Beira do Abismo (1946), Fúria Sanguinária (1949), Crepúsculo dos Deuses (1950), A Morte num Beijo (1955) e A Marca da Maldade (1958) são clássicos do cinema noir.

Esses filmes retratavam os conflitos da vida urbana, a violência policial, o crime organizado e a degeneração política, um tipo de crítica política e social que acabou duramente reprimida no período do macarthismo. Seus protagonistas tinham personalidade dúbia, eram cínicos e cruéis. As cenas eram marcadas por um ambiente opressor, perigosos e corrupto, nos quais até os homens de bem eram arrastados pela correnteza do mal. O herói noir é mal resolvido, bêbado, mulherengo, rejeitado pelos filhos, mas não entrega os pontos nem faz acordo com bandido. Era o fracassado capaz de coisas incomum.

Acusado de “comunista”, o gênero foi banido de Hollywood, mas deu origem aos melhores romances policiais norte-americanos, originalmente publicados em capítulos, nos tabloides sensacionalistas, por escritores que foram roteiristas e precisavam encontrar um meio de sobreviver com seu talento, depois de marginalizados do cinema. Hoje, são um gênero literário reconhecido e copiado mundialmente, com seus grandes autores, como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, traduzidos em dezenas de línguas.

Quem acompanha os debates no Congresso, transmitidos pelas tevês Câmara e Senado, verá muitos personagens dignos de um filme noir se digladiando em plenário. As discussões têm tudo a ver com as polêmicas das décadas passadas, quando o assunto é violência, comportamento, direitos humanos e ideologias. É uma espécie de viagem de marcha à ré.

Dá até para organizar um concurso para identificar, na cena política, um personagem como Gilda, a mulher fatal encarnada por Rita Hayworth no filme do mesmo nome. Não precisa ser, necessariamente, uma mulher. Pode ser uma figura como o craque do Botafogo Heleno de Freitas, passional dentro e fora dos campos.

Nada mais noir do que o decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro sobre a liberação do porte de arma, que foi o assunto do dia no plenário da Câmara e no mercado de ações, por causa da supervalorização, na Bovespa, das ações da Taurus, cujo lobby é representado pela chamada Bancada da Bala.

Cortina de fumaça

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, responsável pelo decreto, reconheceu em audiência que a decisão não foi tomada em razão da política de segurança pública, mas para atender uma promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro, que se autodefine como “armamentista”. O decreto libera o transporte de armas a político em exercício de mandato, advogado agentes públicos, oficial de justiça, caminhoneiro, colecionador ou caçador com certificado, dono de loja de arma ou escola de tiro, residente de área rural, agente de trânsito, conselheiro tutelar, jornalista de cobertura policial, instrutor de tiro ou armeiro, colecionador ou caçador, agente público da área de segurança pública – mesmo que inativo –, entre outros.

O porte de armas era privativo das Forças Armadas, guardas municipais, polícias civil, militar e federal, guarda prisional, Agência Brasileira de Inteligência, Gabinete de Segurança institucional da Presidência, auditor-fiscal e analista tributário, grupos de servidores do poder judiciário. A decisão está sendo questionada por grupos de defesa dos direitos humanos e pela oposição, que a consideram inconstitucional. Todos os estúdios indicam que pode aumentar os indicadores de violência, inclusive feminicídios.

No plenário da Câmara, esse debate ofuscou completamente a audiência do ministro da Economia, Paulo Guedes, na comissão especial que examina mina a reforma da Previdência. Na prática, a medida do governo, como outras polêmicas criadas pelo presidente Bolsonaro, funciona como uma cortina de fumaça em relação ao seu real engajamento na aprovação da reforma da Previdência pelo Congresso.