Valor econômico, v.19, n.4668, 15/01/2019. Brasil, p. A2

 

Combate a facções é correto, mas requer mais uso da inteligência, diz especialista 

Estevão Taiar

15/01/2019

 

 

As medidas adotadas pelo governo do Ceará para combater o surto de violência deste começo de ano são corretas, mas, no médio prazo, também é preciso conhecer mais profundamente como agem os responsáveis por ordenar os ataques, principalmente em um Estado com um número de facções maior do que a média brasileira. É o que diz o sociólogo César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC) e colaborador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

"É inteligência, inteligência e inteligência", diz a respeito das ações necessárias para combater no médio prazo os quatro principais grupos que atuam dentro e fora dos presídios cearenses: Guardiões do Estado (GDE), Família do Norte (FDN), Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV).

As ações criminosas tiveram início no dia 2 de janeiro, e os ataques, entre outras instalações, atingiram delegacias e pelo menos uma prefeitura, além de linhas de transmissão de energia e viadutos - neste caso, com o uso de explosivos.

No domingo, o governador Camilo Santana (PT) sancionou um pacote de combate ao crime organizado, aprovado pela Assembleia Legislativa um dia antes em reunião emergencial. As medidas incluem a convocação de militares da reserva, pagamento de recompensa por informações e a autorização para que o Ceará receba temporariamente policiais de outros Estados e União.

Nos primeiros dias do ano, Santana já havia solicitado ao ministro da Justiça, Sergio Moro, a presença da Força Nacional de Segurança Pública em território cearense. "Estamos vivendo uma situação que exige soluções imediatas", diz Barreira, elogiando as medidas e a "postura firme do governador". "Ele precisa manter essa posição, para que seja retomada certa paz, certa normalidade", diz. O sociólogo destaca que quase todas as ações vêm sendo realizadas em áreas pobres, o que traz um grande "custo social".

Para Barreira, antes do início dos ataques já existia, principalmente na capital Fortaleza, um clima de tensão, causado pelo aumento dos índices de violência urbano. Os dados mais recentes do FBSP mostram que houve 5.042 pessoas assassinadas em todo o Estado em 2017 - alta de mais de 50% em relação ao ano anterior. Na comparação com 2014, primeiro ano da série histórica, houve também o crescimento do número de latrocínios, pessoas mortas pela polícia, policiais mortos, desaparecimentos de pessoas e roubos de carga, entre outros crimes. No ano retrasado, o Estado foi dono da terceira maior taxa de mortes violentas intencionais (MVIs) de todo o Brasil. Entram na conta homicídios, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte, homicídios de policiais e mortes resultantes de intervenções policiais. Ao todo, as MVIs ficaram em 59,1 por 100 mil habitantes no Ceará, quase cinco vezes mais do que as 10,7 MVIs por 100 mil habitantes registradas em São Paulo no mesmo período.

Somados a esse quadro de deterioração generalizada, diversos acontecimentos funcionaram como gatilho para os ataques. Ainda no fim de 2018, publicações em redes sociais já mostravam que a nomeação de Luís Mauro Albuquerque para a Secretaria da Administração Penitenciária não havia sido bem recebida entre as facções.

Policial civil por formação e ex-secretário de Justiça do Rio Grande do Norte, Albuquerque é conhecido por seu perfil linha dura na relação com os presos. Em sua posse, logo no primeiro dia do ano, ele prometeu, por exemplo, acabar com a separação dos presos por facções. Relatos de administrações anteriores do sistema prisional cearense diziam que, "sem a separação, haveria uma carnificina", segundo Barreira. Toda essa combinação ajudou a desencadear de vez os ataques, de acordo com ele.

Curiosamente, o sociólogo vê sinais de uma aliança pontual e "por baixo dos panos" entre as facções que atuam em território cearense, até mesmo entre o PCC e o CV, como retaliação às mudanças recentes no sistema penitenciário estadual. A presença dos quatro grupos criminosos dificulta o combate das forças de segurança. "Há uma disputa permanente entre as facções, o que torna a violência difusa", diz. O GDE, especialmente, tem histórico de imprevisibilidade em suas ações, já que as lideranças da facção são jovens e não obedecem a "regras muito sedimentadas" ou a uma cúpula localizada em outros Estados, como PCC e CV.

Por todas as características da crise cearense, Barreira não considera a disseminação dos ataques pelo Brasil o cenário mais provável. "Chance tem, essas coisas sempre podem explodir", diz. "Mas hoje, para mim, isso está acontecendo por questões muito ligadas ao próprio Ceará."

Para ele, ainda que o poder público tenha algum conhecimento das facções, no médio prazo é preciso aprofundar o entendimento a respeito de como elas funcionam. "É necessário mapear cada vez mais qual o tipo de atuação que elas têm dentro e fora dos presídios, as principais lideranças, as estratégias, os estatutos", diz.

Já a defesa feita pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) no sábado, via Twitter, da tipificação como terrorismo de ações como as do Ceará é vista com ressalvas. "Tenho medo de esse radicalismo se estender para outras situações", afirma.