Valor econômico, v.19 , n.4678 , 29/01/2019. Legislação & Tributos, p. E2

 

Insegurança dos acordos de leniência

Michel Sancovski

29/01/2019

 

 

Em recente discurso em conferência internacional, o "Deputy Attorney General" dos EUA - segundo na linha de comando do Departamento de Justiça Americano - tratou das recentes resoluções de casos com empresas ao redor do mundo por violação da Lei Anticorrupção Americana (US Foreign Corrupt Practices Act - FCPA).

A autoridade ressaltou que os acordos foram realizados de forma consistente com a também recente política anunciada pelo Departamento de Justiça, a qual prevê a celebração de acordos e aplicação de penalidades de forma coordenada quando há mais de uma autoridade ou ente competente no processamento de determinada violação.

Referida política, quando anunciada, foi vista como promissora para endereçar o sério problema de ausência de coordenação entre as autoridades e a imposição redundante de multas e penalidades pelo mesmo fato irregular.

(...)

O Departamento de Justiça Americano anunciou que tem por objetivo aumentar o relacionamento com autoridades que possuam competência sobre determinada irregularidade - dentro e fora dos EUA - e evitar a aplicação duplicada de penalidades. É importante punir aqueles que cometam irregularidades, mas não se deve aplicar a lei de forma ineficiente e desproporcional, ocasionando a situação em que múltiplas autoridades processam uma mesma pessoa pela mesma irregularidade.

No âmbito internacional, quando o processo investigativo e a negociação dos acordos envolve autoridades brasileiras, o que se vê é um alto nível de cooperação com autoridades estrangeiras - que, por sinal, muito alavancou o resultado dos recentes acordos, bem como a acelerou o andamento das investigações. No entanto, dentro do território brasileiro, há evidente deficiência no diálogo entre as diversas autoridades que se consideram competentes na aplicação da Lei Anticorrupção brasileira.

Nossa Lei Anticorrupção - que em 29 de janeiro completará cinco anos de vigência - estabelece o Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) como órgão competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal. Inclui-se neste processo de negociação a Advocacia Geral da União (AGU), a qual deverá necessariamente participar, conforme portaria interministerial publicada conjuntamente por ambos os órgãos em dezembro de 2016.

O desafio se inicia, no entanto, quando há o envolvimento de outras autoridades. O Ministério Público Federal tem celebrado acordos de leniência e inclusive, por meio da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão - Combate à Corrupção, publicou em julho de 2017 a Orientação nº 07/2017 com diretrizes para celebração desses acordos. O Tribunal de Contas da União também publicou a Instrução Normativa nº 74/2015 pela qual estabelece as etapas de supervisão do TCU no âmbito desses acordos e a necessidade de submissão ao tribunal daqueles celebrados no âmbito da administração pública federal com base na Lei Anticorrupção.

A pulverização de autoridades no âmbito nacional e a deficiência de diálogo entre elas causa incertezas, como foi o caso do recente acordo de leniência celebrado entre CGU, AGU e a construtora Odebrecht cuja vigência foi ameaçada. Após a celebração, o TCU, na qualidade de fiscalizador dos atos da administração, colocou em risco o acordo, o qual previa a restituição de R$ 2,7 bilhões a órgãos do Executivo federal lesados em esquemas investigados na Lava-Jato.

Por trás do acordo de leniência há inequívoca intenção de remediação por parte da pessoa jurídica. Afinal, há admissão e interrupção de participação no ilícito, cooperação com as investigações e obtenção de documentos comprobatórios da infração.

O conflito e a ausência de harmonia entre autoridades locais gera um ambiente em que o aspecto punitivo se sobrepõe à intenção de remediação. Hoje, a sistemática dos acordos de leniência no Brasil pode ser classificada como um grande buraco negro: há diversas portas de entrada, mas não necessariamente uma porta de saída.

Diante de um cenário de incertezas o que se verifica é uma justificável resistência das pessoas jurídicas na busca por este instrumento de composição e uma perda generalizada: autoridades não recebem informações relevantes para as investigações e pessoas jurídicas encontram obstáculos para avançar no processo de remediação.

Até que se ocorra uma reforma legislativa para endereçar com mais clareza o processo de negociação dos acordos de leniência é indispensável um maior diálogo entre as autoridades e a criação de um ambiente de maior segurança jurídica. As atribuições e competências dos órgãos da administração pública brasileira não devem ser desconsiderados, mas relativizados e acompanhados do mesmo padrão de diálogo e cooperação observado com autoridades estrangeiras nos acordos internacionais.

 

Michel Sancovski é sócio da área de Anticorrupção & Compliance do Tauil & Chequer Advogados

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