Valor econômico, v.19, n.4672, 21/01/2019. Legislação & Tributos, p. E2

 

Leis e os aplicativos de hospedagem 

José Roberto Graiche Júnior 

21/01/2019

 

 

Pode um proprietário ou um inquilino locar ou sublocar o imóvel por curtas temporadas, usando plataformas virtuais? A disseminação dos aplicativos de hospedagem residencial e a falta de leis específicas e de jurisprudência no Brasil alimentam o debate - e as controvérsias nos condomínios - em torno da resposta. Trata-se de mais uma ilustração do descompasso entre a legislação e os avanços da era digital, que só pode ser corrigido com regras claras para esse novo modelo de relação entre locadores, locatários e condomínios.

Veja-se um caso real ocorrido na zona sul da capital paulista. O locatário de uma das 14 unidades do edifício tinha a anuência do proprietário para oferecer parte do apartamento para sublocação. O inquilino recorreu a plataformas de aluguel por temporada, postando fotos do imóvel, das áreas comuns e detalhes do funcionamento do prédio.

Contrariados, os donos das demais 13 unidades, em assembleia, fixaram um prazo de 30 dias para a interrupção dos anúncios. O proprietário resolveu entrar na Justiça e obteve liminar para garantir que seu inquilino prosseguisse com os anúncios. O condomínio recorreu e o caso está no Tribunal de Justiça do Estado.

Já em um condomínio do Recife, moradores se mobilizaram contra uma proprietária que estava sublocando o apartamento via plataformas. Os condôminos incluíram a proibição no regimento interno e chegaram a notificar a moradora extrajudicialmente. Desde então a proprietária parou de anunciar o apartamento na internet e o caso foi pacificado.

Já não é de hoje que as novidades do mundo digital para o mercado imobiliário geram conflitos: eles vêm pelo menos desde 2012, quando se intensificaram os preparativos para a Copa de 2014. Entretanto, as discussões formais dentro dos condomínios ainda não são predominantes. Em levantamento feito em novembro de 2018, a Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo (AABIC) constatou que em 53% dos condomínios da cidade de São Paulo ainda não houve discussão do tema em assembleia. Nos 47% restantes, 64% proibiram a locação curta por plataformas digitais.

Observar a experiência internacional ajuda pouco, dada a diversidade de soluções. Algumas são mais amigáveis - caso da capital holandesa Amsterdã; outras são mais restritivas, como Barcelona, na Espanha. No Brasil, existem iniciativas de leis municipais para regulação. A goiana Caldas Novas foi a primeira a cobrar imposto dos proprietários que locavam imóveis por curta temporada por aplicativos. Ubatuba, no litoral paulista, tenta seguir esse caminho, mas uma lei municipal ainda depende de um decreto final para vigorar.

Em uma perspectiva federal, é difícil prever ação conclusiva do Legislativo, sobretudo com a renovação do Congresso. Mas tramita no Senado o Projeto de Lei nº 748/15, que altera a Lei do Inquilinato para atualizar o regime de locação por temporada, disciplinando a atividade de aluguel curto de imóveis residenciais por plataformas de intermediação de negócios.

Para que as decisões tomadas em assembleias tenham força nas hipóteses de contestação judicial, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) recomenda que as deliberações sejam resultado do consentimento da maioria absoluta de condôminos (50% + 1). Mas o ideal é que a decisão reflita a vontade expressa por no mínimo dois terços dos proprietários, fatia que permite a modificação de regras da convenção condominial.

Cada lado tem alegações fundamentadas em dispositivos legais já existentes. Dizem os defensores do aluguel por curtas temporadas intermediado por plataformas digitais que essa modalidade de locação, desde que não exceda 90 dias, é um direito do proprietário, previsto pela Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato).

Segundo esse diploma, configura locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, motivada por lazer, educação, tratamentos médicos e obras na residência habitual, entre outras razões. Os condomínios, por sua vez, podem defender a proibição amparados no artigo 3º do Decreto 84.910, que designa como serviço de hospedagem (típico de hotéis, pensões, flats) a locação de imóvel por diárias. O dispositivo veda a exploração de meios de hospedagem sem que haja registro na Empresa Brasileira de Turismo (Embratur). Por essa leitura, o aluguel para curta temporada por plataforma digital representaria uma mudança substancial na natureza do imóvel - de residencial para comercial.

Os condôminos que se opõem à nova prática citam uma eventual diminuição da segurança provocada pela elevada rotatividade de inquilinos. Ademais, a permissão implicaria a ampliação de infraestrutura de segurança e de quadro de funcionários e representaria potenciais aumentos nos consumos de água e gás encanado (com efeitos diretos sobre o valor da cota condominial mensal). Nesse caso, os condôminos podem recorrer ao que determinam os artigos 1.277 e 1.336 do Código Civil: proprietários devem agir para interromper práticas que afetem a segurança, o sossego e a saúde dos demais condôminos.

Caso o condomínio decida autorizar as locações por curtos períodos, é importante que aproveite para criar regras específicas. Alguns edifícios estabelecem, por exemplo, um período máximo de permanência e a obrigação de cadastro prévio de todas as pessoas que ocuparão o imóvel.

O país ainda está longe de ver essas disputas pacificadas ou novas regras serem determinadas pelo Legislativo. A esperança recai sobre a possibilidade de casos mais antigos chegarem logo aos tribunais superiores, que poderiam enfim oferecer uma jurisprudência ao mercado imobiliário.