Valor econômico, v.19 , n.4671 , 18/01/2019. Legislação & Tributos, p. E2

 

Globalização econômica e serviços jurídicos

Felipe Albuquerque

18/01/2019

 

 

Em meio às incertezas quanto à saída do Reino Unido da União Europeia, é grande a movimentação para atrair empresas interessadas em se transferir para outras jurisdições do continente europeu. Por razões óbvias, o mercado financeiro tem sido o alvo mais cobiçado e é disputado por cidades como Paris e Frankfurt. O mercado de serviços jurídicos, contudo, não passou despercebido. O setor é uma das atividades econômicas que desperta grande interesse, e não sem motivo: estudos recentes estimam que 80% dos litígios hoje submetidos a Commercial Court of London possuem ao menos uma parte de outra nacionalidade e em 50% dos casos todas as partes são estrangeiras.

Mirando as grandes transações internacionais, países como Alemanha, Bélgica, França e Países Baixos se preparam para eventuais oportunidades. Em alguns casos, já há resultados visíveis: em Paris, seguindo recomendação do "Haut Comité Juridique de la Place Financière de Paris", foram criados novos tribunais especializados em litígios comerciais internacionais, com regras processuais mais flexíveis e a possibilidade de apresentação do caso em inglês. No último mês de dezembro, o senado holandês aprovou a criação da Netherlands Commercial Court (NCC). Propostas como essa, em diferentes estágios, avançam também em Frankfurt e em Bruxelas.

Com algumas variações, tais iniciativas se apoiam em duas justificativas. Primeiramente, a relevância econômica do mercado de serviços jurídicos, que todos os anos movimenta centenas de bilhões de dólares. Além disso, as alterações são percebidas como um diferencial que pode contribuir para a atração de outros setores, inclusive o mercado financeiro. Afastando-se da tendência de ver o direito apenas como um custo, a perspectiva é invertida para imaginar o sistema jurídico como uma vantagem comparativa.

As pretensões do mercado de serviços jurídicos no Brasil certamente não são as mesmas das jurisdições europeias

Enquanto isso, no Brasil, um país com cerca de um milhão de advogados, incontáveis faculdades de direito e frequentes reclamações quanto à precarização da profissão, ainda há grande resistência (e certo constrangimento) em pensar o exercício do direito sob uma perspectiva abertamente econômica. O modelo brasileiro vê com ressalvas a possibilidade de integração internacional e com ainda mais desconfiança a "mercantilização da advocacia".

Contudo, a verdade é que não há meio efetivo de impedir a saída de grandes litígios do país. Em um cenário onde a eleição de foro estrangeiro e a submissão de litígios contratuais a tribunais arbitrais com sede no exterior são globalmente aceitas, as portas de diferentes jurisdições estão sempre abertas.

Além disso, as regras acabam aumentado a exclusão que se pretende evitar: enquanto uma pequena parcela do mercado é capaz de suportar os custos da internacionalização de suas atividades e aproveita os benefícios de um mercado globalizado, pequenos e médios ficam à margem. Por essas e outras razões, o isolamento não parece ser o caminho a ser seguido. E nem mesmo faz justiça à vocação cosmopolita e empreendedora de boa parte dos advogados brasileiros.

A nota positiva, por ora, fica por conta da arbitragem. Apesar do marco regulatório do instituto ser relativamente recente (a Lei de Arbitragem é de 1996), algumas câmaras de arbitragem do país já operam com padrões de qualidade comparáveis às principais instituições de arbitragem de Paris, Londres, Cingapura ou qualquer outro centro renomado. Nessa área, o desafio atual é mais ambicioso: passar a atrair litígios exclusivamente estrangeiros, isto é, em que nenhuma das partes envolvidas é brasileira. Perseguindo esse objetivo, algumas instituições brasileiras (CAM-CCBC, Camarb, Amcham Brasil e Ciesp/Fiesp) buscam expandir o horizonte de sua atuação e competir no mercado global de litígios, oferecendo a cidade de São Paulo e as câmaras brasileiras como uma alternativa viável.

As pretensões do mercado de serviços jurídicos no Brasil certamente não são as mesmas das jurisdições europeias. Os eventos recentes, contudo, são uma convidativa oportunidade para se repensar o direito sob uma perspectiva global. Sem ignorar a existência de algumas armadilhas no sistema de incentivos por trás das escolhas por advogados e jurisdições, esses movimentos deveriam provocar a reflexão acerca das oportunidades na área jurídica, bem como as possíveis sinergias com outros setores, advindas da globalização das atividades econômicas.

 

Felipe Albuquerque é advogado (BFBM & Associados) e professor de direito internacional privado e arbitragem. Diploma de Direito Internacional Privado, The Hague Academy of International Law, mestre em Direito Internacional (UERJ). Foi pesquisador visitante na École de Droit de Sciences Po, Paris.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações