Valor econômico, v.19 , n. 4673 , 22/01/2019. Brasil, p. A2

 

Ancine aponta prejuízos em fundo do audiovisual de R$ 350 milhões

Rafael Bitencourt

18/01/2019

 

 

A Agência Nacional do Cinema (Ancine) enviou a três órgãos de controle federais - TCU, CGU e MPF - o resultado da auditoria interna, concluída em setembro, que apurou suspeitas de uso indevido de recursos da política de fomento à produção audiovisual com recursos da isenção fiscal sobre remessas de programadoras estrangeiras ao exterior. Procedimentos não previstos em lei e falta de controle rigoroso das movimentações financeiras podem ter desfalcado o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) em mais de R$ 350 milhões no período de 2013 a 2017.

O levantamento identificou problemas na captação à época de ao menos R$ 200 milhões para 64 de projetos. Além de irregularidades em procedimentos internos, o relatório, o qual o Valor teve acesso, indicou que houve evasão fiscal de R$ 157,7 milhões, com base no volume total de R$ 17,1 bilhões em remessas ao exterior feitas no período investigado.

A auditoria foi motivada por denúncia anônima ao Ministério da Cultura e veio a público em 2017. As suspeitas iniciais foram lançadas sobre a alocação e aplicação de recursos envolvendo três empresas conhecidas do ramo: a Turner (maior programadora internacional com atuação no Brasil) e duas produtoras independentes, a Gullane e a O2 Produções, que reúnem um portfólio de títulos nacionais premiados.

A análise dos repasses foi além dos casos citados na denúncia. O pente-fino passou pelas movimentações financeiras de todas as programadoras estrangeiras que aplicaram 3% do valor das remessas internacionais em cerca de 200 projetos. Todas as obras, muitas já exibidas, são de produtoras independentes - não vinculadas a outros segmentos, como emissoras de TV, operadoras de TV paga e programadoras.

O mecanismo, que beneficia programadoras estrangeiras e produções independentes, está na lei desde 2001. Na prática, as estrangeiras têm isenção na Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), aplicada aos rendimentos remetidos ao exterior. Já as produtoras nacionais asseguram o financiamento dos projetos idealizados.

O incentivo às programadoras ocorre a partir do depósito de 3% das remessas em conta bancária aberta para isso. A partir de então, começa a contar o prazo de 270 dias para requerer o uso dos recursos em projetos já submetidos à validação da Ancine. Se esse protocolo não for cumprido, os recursos deverão ser transferidos ao FSA para serem acessados pelo caminho mais longo, via editais lançados pela agência.

Dos 64 projetos com irregularidade, em 47 os recursos foram aplicados antes que o esboço da obra fosse aprovado ou submetido a análise. Outros 17 tiveram recursos aplicados após o prazo legal de 270 dias.

Os grupos estrangeiros são estimulados a participar da política de incentivo por poderem também indicar os projetos. Isso garante a participação das programadoras no direito comercial das produtoras na distribuição e exibição das obras.

A Ancine, apesar de já ter enviado o resultado da auditoria aos órgãos de controle, não submeteu o documento à apreciação da diretoria. As recomendações feitas pelos auditores - para aumentar o rigor dos procedimentos, por exemplo - poderão ser acatadas. Ainda é uma incógnita sobre o que poderá ser feito frente a constatação de que houve repasse ilegal de recursos apesar de ter o aval do comando do órgão regulador.

Entre os servidores da Ancine, a liberação indevida de verbas é vista como "lambança" da gestão anterior, sob a liderança do ex-diretor-presidente Manoel Rangel. As decisões anteriores da diretoria consideraram o teor de pareceres da Procuradoria Federal Especializada (PFE), órgão jurídico vinculado à Advocacia-Geral da União (AGU). O documento foi assinado pelo então procurador-geral e atual diretor do órgão, Alex Braga Muniz. A posição jurídica contrariou as reiteradas análises da área técnica que sugeriam a rejeição dos pedidos das empresas.

Outro fato controverso das decisões envolve a atuação da atual diretora da Ancine Debora Ivanov. Ela foi produtora na Gullane e, por isso, foi declarada impedida de participar de deliberação, em 2017, sobre realocação de verbas em favor da produtora.

Em nota, a Ancine informou que auditoria interna foi solicitada já na gestão do diretor-presidente, Christian de Castro, em fevereiro de 2018, para apurar a denúncia de "possíveis irregularidades na alocação/aplicação de recursos" gerenciados pelo órgão. A autarquia admite que "houve de fato irregularidades na aplicação dos recursos num total de 64 projetos".

Segundo a agência, o valor total dos projetos auditados ainda está "sob avaliação". Ressalta que a auditoria foi enviada aos órgãos de controle e à Secretaria Especial da Cultura para que sejam tomadas "as providências cabíveis". Ainda não se sabe quais serão os desdobramentos da fiscalização nesses órgãos e se envolverá ordem de ressarcimento ao FSA ou punição aos agentes públicos envolvidos.

A O2 Filmes disse que não foi procurada pela Ancine ou outro órgão oficial para prestar esclarecimentos. Reforçou ainda que todos os projetos possuem "número de aprovação" e que até o momento não recebeu nenhuma notificação. Procuradas, Turner e Gullane não responderam até a conclusão desta edição.