Valor econômico, v.19, n.4818, 20/08/2019. Legislação & Tributos, p. E2

 

A nova defesa criminal 

Daniel Zaclis 

20/08/2019

 

 

Imagine, caro leitor, receber um e-mail de um advogado desconhecido solicitando a sua presença no escritório dele para que seja ouvido como testemunha de um crime. À exceção de quem se habituou a assistir a seriados americanos, essa cena até pouco tempo atrás passaria longe de nossa realidade. Não mais.

A razão é que o sistema criminal brasileiro sofre um intenso processo de americanização. Se antes éramos importadores de legislações europeias continentais, hoje a tendência parece ser o emprego de institutos típicos dos EUA. Os acordos de não persecução, as colaborações premiadas e a tese da cegueira deliberada evidenciam essa nova cara do processo penal.

Ao nos espelharmos cada vez mais nos EUA, busca-se um modelo penal mais pragmático, que privilegia resultados quantitativos de demandas, afastando-se cada vez mais de um processo clássico, de ritos previamente definidos e quase sempre longos. O tradicional anseio por uma sentença conclusiva a respeito da inocência ou culpa do réu não guarda mais tanta relevância nesse sistema, dado que ele se baseia muito mais na resolução de conflito do que propriamente num ideal de justiça.

Nesse movimento, as partes (acusação e defesa) assumem maior protagonismo na busca por evidências dos fatos. Retira-se da autoridade policial e dos juízes o monopólio sobre a gestão das provas, permitindo que os reais interessados na solução da demanda tomem as rédeas do processo.

Não por acaso, em nosso país, o Ministério Público já conduz, há algum tempo, suas próprias diligências investigativas - mitigando a competência da polícia - com vistas a trazer elementos para embasar suas acusações. Faltava, no entanto, que a defesa tivesse esta mesma prerrogativa, proporcionando que as informações coletadas pelo acusado, mesmo antes de um eventual processo formal, pudessem ser levadas ao conhecimento do juiz.

A lacuna foi suprida com o recente Provimento nº 188/18, publicado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados, o qual trata - ainda que timidamente - da chamada "investigação defensiva". Tal como ocorre nos EUA, o advogado brasileiro passa a ter poderes para conduzir depoimentos de testemunhas, bem como requerer dados diretamente a órgão públicos, dentre outras medidas que anteriormente eram possíveis apenas mediante autorização das autoridades estatais. O advogado, assim como já ocorria com os representantes do Ministério Público, passa a deter poderes de investigação, sem a necessidade de autorização da polícia.

Com a investigação defensiva, entra em cena uma nova forma de atuação do advogado criminalista, que passa também a exercer um papel ativo na apuração dos fatos. O benefício para a busca da verdade é enorme, a qual sempre sairá ganhando com uma maior exposição dialética de posições.

Logicamente que ainda resta um caminho longo a se percorrer para que exista uma efetiva investigação defensiva em nosso sistema. Até porque, como é sabido, nossa realidade demonstra que a maioria dos réus são indivíduos que não podem arcar com advogados durante a fase processual, que dirá contar com um profissional para realizar investigações extraprocessuais por conta própria. Mas, se não é o ideal, ao menos já temos um começo.

Há quem questione a competência do Conselho da OAB para dispor sobre diligências investigativas no processo penal. É verdade que, em matéria penal, nunca é aconselhável estipular procedimentos por resoluções. Por incrível que pareça, porém, isso não tem sido um problema perante o Judiciário que tem, por exemplo, avalizado acordos de não persecução firmados pelo Ministério Público, com base exclusivamente em uma resolução editada por aquele órgão.

A possibilidade da investigação defensiva é uma pequena vitória para aqueles que veem na defesa criminal uma peça indispensável para o correto funcionamento de um Estado Democrático de Direito.

Em tempos nos quais toda resposta a problemas estruturais graves se dá por meio de uma maior repressão punitiva, e abusos do Estado são aplaudidos diariamente pela sociedade, é esperançoso ver que se concedeu à defesa um modo de proceder que, até recentemente, estava restrito à acusação. O desequilíbrio nunca é bom para a justiça.