O globo, n. 31314, 02/05/2019. Artigos, p. 3
Soluções para cracolândias
Ascânio Seleme
02/05/2019
Há dois caminhos para se combater as drogas. O primeiro é pela repressão ao consumo e ao tráfico. Este é o método mais usado, embora seja comprovadamente menos eficiente. O segundo é o da redução de danos, que não busca a abstinência do consumidor de drogas pela força, mas estimula a diminuição do uso de drogas a partir de diversas medidas em favor da saúde, da higiene e da reeducação social do viciado. O município de São Paulo prepara um programa de redução de danos que pretende reduzir em 80% o número de pessoas na cracolândia do centro da cidade.
Calcula-se que perambulem à noite pela cracolândia pelo menos mil consumidores de crack. As condições sanitárias da região são péssimas, e todo o ambiente local é contaminado. Quase nada funciona nas ruas por onde os viciados se espalham. O comércio que antes existia ali fechou as portas ou tornou-se incipiente. Inúmeros imóveis, prédios de apartamentos e galpões foram fechados. Muitos tiveram portas e janelas cimentadas para que os usuários não os ocupem.
O prejuízo para a cidade e seus cidadãos é enorme. Mas a principal vítima é o usuário, um pária, um inútil, do ponto de vista das autoridades e da sociedade. Por isso o combate com o uso da força é aplaudido, apesar de sua ineficácia. Todas as operações da polícia para afugentar cracudos e reprimir traficantes não duram mais do que 24 horas. No dia seguinte, todos estão de volta, viciados e traficantes.
O programa que a prefeitura de São Paulo quer implementar tem exemplos de sucesso em diversas cidades do mundo. Consiste em construir abrigos para usuários com toda uma infraestrutura que ofereça a eles banho, comida e cama, além de tratamento médico permanente. Ao mesmo tempo, tolera-se o consumo controlado do crack. O objetivo é criar condições sanitárias e um ambiente social mais saudável que encaminhe para a redução do consumo.
Um viciado pode consumir até dez pedras de crack por dia. Neste nível de dependência, o usuário fica inabilitado para qualquer atividade. Ele não consegue estudar, trabalhar, ou fazer qualquer outra atividade produtiva. Nos espaços criados em grandes cidades europeias e americanas, o consumo pode ser controlado, e a ansiedade para o uso da droga consegue ser reduzida. Segundo especialistas, se o usuário reduzir de dez para três pedras seu consumo diário, ele passa a ser uma pessoa apta ao trabalho, primeiro passo para o fim da dependência.
Para isso, é preciso um investimento expressivo para pagar os custos das casas de acolhida e dos diversos tipos de funcionários (médicos, enfermeiros, agentes de serviço social, cozinheiros, entre outros). Por outro lado, o sucesso de uma ação como esta pode oferecer de volta para a comunidade áreas degradadas da cidade.
São diversos os casos que inspiraram os idealizadores do programa paulista. Algumas cidades reduziram dramaticamente e outras eliminaram completamente os espaços ocupados de maneira desordenada por consumidores de drogas, as conhecidas “Open Drugs Scenes”, ou áreas abertas de consumo. Em Zurique, o famoso “Needle Park”, ou parque da agulha, voltou a ser a velha Platzspitz, e os usuários que injetavam heroína no local foram transferidos para um ambiente fechado e controlado, mas tolerante ao consumo de droga.
O mesmo ocorreu no Bryant Park, entre a Quinta e a Sexta Avenidas de Nova York, onde a criminalidade caiu 80% depois do fim da área aberta e a criação de um espaço próprio para o consumo controlado de drogas. Em Lisboa, o Casal Ventoso, enorme área que era ocupada por até cinco mil usuários de crack, foi desmobilizada em favor de um centro de tratamento especializado e tolerante ao consumo controlado. Em Viena, a Karlsplatz, que virou sinônimo de área aberta de consumo, hoje voltou a ser uma praça agradável onde fica um dos mais bonitos templos da Europa, a Igreja de São Jorge.
Está claro que existem soluções para as cracolândias. Mas elas exigem coragem, porque os agentes públicos devem ser sobretudo tolerantes. E este é um estado de espírito em falta no Brasil nestes últimos tempos.