Valor econômico, v.20, n.4817, 19/08/2019. Empresas, p. B3

 

Advogado reacende debate sobre conflito 

Ana Paula Ragazzi 

19/08/2019

 

 

Nas últimas semanas, o mundo das companhias abertas agitou-se em torno da possibilidade de uma mudança na Lei das Sociedades por Ações liberar o voto do acionista controlador em operações com potencial conflito de interesse. O entendimento do mercado há dez anos, reforçado por parecer de orientação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), é que o acionista está previamente impedido de votar, pelo chamado "conflito formal".

A nova redação para o artigo 115 da lei mudaria essa tese para o "conflito material". Autorizaria o voto, em boa fé e condições equitativas. Sem divulgação, o texto foi incluído na medida provisória (MP) da Liberdade Econômica enquanto ela tramitava no Congresso. Acabou ficando com cara de "jabuti" - quando as entidades de mercado perceberam a medida, após reportagem do Valor, queixaram-se de que ela seria pró-controlador em detrimento dos minoritários. E questionaram a falta debate. O tema acabou retirado do da MP, que quis fugir de polêmica.

Mas permaneceu a curiosidade no mercado de saber como é que o assunto foi parar lá e com essa interpretação, já que o debate existe praticamente desde 1976, quando a lei foi sancionada, mas sem consenso. Fontes que participaram das discussões apontam que foi a partir da iniciativa do advogado carioca João Accioly, de 38 anos de idade. Ele teria sido a ponte para temas do mercado terem espaço na MP. Isso englobou desde a discussão sobre ajustes nas regras da indústria de fundos de investimento e a desconsideração da personalidade jurídica, até a alteração do artigo 115. Accioly, sócio do escritório Sobrosa e Accioly, rejeita qualquer "autoria" na MP. "Sou próximo ao Paulo Uebel [secretário de desburocratização do governo] e me coloquei à disposição para ajudar ", diz. "Acabei convocado a contribuir com temas e aperfeiçoar as ideias para a MP."

O caminho escolhido para isso foi acessar colegas de mercado. E a ideia surgiu no primeiro encontro, com Julian Chediak, um dos principais especialistas em direito societário do país e professor e orientador de Accioly na graduação da PUC- Rio. Accioly rejeita a crítica de que faltou debate ou de que a proposta tenha sido feita "na calada da noite", como chegou a afirmar a Amec, associação que reúne minoritários. Entre as justificativas, o fato de ter sido assinada por especialistas no assunto, via comissão da OAB, integrada por Chediak. Além disso, ele diz que proposta já entraria na primeira edição da MP. Isso só não aconteceu porque a CVM pediu para que o texto fosse retirado - e aí então houve a decisão de buscar uma redação proposta pela OAB. As sugestões da CVM não foram aceitas porque não eliminavam as dúvidas e também porque estipulavam que a autarquia poderia fixar condições prévias para o exercício do voto. A avaliação foi que seria dar um cheque em branco para a CVM impor restrições, o que a deixaria acima da lei.

Pessoalmente, o tema inquieta Accioly pelo menos desde 2017, quando o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, o "conselhinho", reverteu decisão da CVM de 2015 que havia condenado a União por ter votado numa assembleia da Eletrobras de 2012.

Com esse voto, a elétrica, seguindo interesse do governo Dilma, aderiu à renovação antecipada das concessões, renunciando ao direito de contestação judicial da indenização. A medida gerou prejuízos para a empresa. A CVM condenou a União pelo "conflito formal". O conselhinho entendeu que a União tinha o obrigação e o dever de votar, pois seus interesses se confundiam com os da empresa no "eficiente provimento de serviços públicos de energia". Após esse evento, Accioly escreveu um artigo, em parceria com a colega de faculdade Julia Franco. Eles defenderam que o voto da CVM só foi revertido porque a discussão de deu no âmbito da proibição do voto. Se, como prega o "conflito material", tivessem olhado para a operação que gerou perda para a companhia e favoreceu a União, a decisão não teria sido revista. Ou seja, para eles, a ideia de que o conflito formal "protege" o minoritário de um controlador mal intencionado não vingou desta vez. "É como julgar a pessoa por ter entrado com a arma no banco, mas não pelo dinheiro que levou", diz Accioly.

A ressalva é que a decisão final do conselhinho foi dada pelo representante do Ministério da Fazenda - ou seja, indiretamente pela própria União. O caso envolve portanto, outros conflitos além do formal e do material.

Na avaliação de Accioly, é um erro impedir previamente o voto por pressupor que toda a operação é pensada exclusivamente para prejudicar o minoritário. "As pessoas têm de poder votar, de boa fé. Se fizerem algo errado e isso for comprovado, têm de ser punidas", diz. E é por essa razão que ele defende que o assunto tinha tudo a ver com a MP, que defendeu preceitos de liberdade no exercício da atividade econômica, presunção de boa-fé do particular, intervenção subsidiária do Estado e redução da burocracia. No momento atual de privatizações, ele diz que mais clareza ao assunto seria positivo.

Accioly diz que espera que a polêmica sirva para que esse tema seja finalmente enfrentado. "O saldo é positivo, pois o debate foi aquecido. É o momento ideal para chegarmos aos ajustes necessários", diz. O presidente da CVM, Marcelo Barbosa, acenou com a possibilidade de a autarquia participar do debate, como já havia sido sugerido pelo diretor da CVM, Gustavo Gonzalez, num voto de 2017 - que serviu de inspiração para Accioly.

O advogado acompanhou a votação da MP em Brasília e tem discutido questões econômicas com o ministro Paulo Guedes e seus assessores. A proximidade com Uebel vem dos tempos da juventude, quando tomou contato com IEE e o Instituto Liberal. Accioly é fundador do Instituo Millenium, ao lado da tia, Patricia Carlos de Andrade, e de Guedes, entre outros.

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Sugestão criava ônus para minoritário 

Ana Paula Ragazzi 

19/08/2019

 

 

"O texto proposto pela comissão da OAB Federal para o artigo 115 da Lei das Sociedades por Ações é inadequado porque cria uma hegemonia para os controladores e leva a uma judicialização de eventuais abusos, sem qualquer ônus para esse controlador", diz o jurista Modesto Carvalhosa. Ele observa que a redação deposita sobre o minoritário o ônus de provar que a operação não ocorreu em termos equitativos para só então buscar a anulação desse voto.

O impacto prático, ele diz, seria a judicialização das deliberações ao encargo dos minoritários. A opção da arbitragem não seria adequada, por ser muito custosa, avalia. O professor reforça que, apesar de a discussão ser no caso brasileira permeada pelo fato de a maioria das empresas ter controlador definido, o artigo 115 se refere ao voto de qualquer acionista em conflito e, portanto, afasta a suposição de uma "ditadura dos minoritários".

Ao justificar sua proposta de alteração, a comissão da OAB, formada por 16 renomados advogados, sustenta que a intenção foi aumentar a segurança jurídica. A redação, segundo a comissão, seguiria o entendimento da maioria da doutrina jurídica do Brasil, "incluindo os próprios redatores, Alfredo Lamy e José Luiz Bulhões Pereira". O objetivo seria impedir que "transações legítimas sejam impedidas pelo suposto risco de violações". A ideia emprestaria conceitos de Delaware, nos Estados Unidos; e da legislação italiana.

A advogada Luciana Dias, ex-diretora da CVM, observa que houve uma tentativa de importar pontos do direito americano, mas de forma incompleta. Lá, ela diz, é verdade que o acionista em situação de potencial conflito pode votar, mas é ele que fica com o ônus de comprovar o caráter equitativo da operação. "Como essa é uma missão quase sempre muito complexa juridicamente falando, o que acontece é que ele normalmente, não vota", diz. Segundo a advogada, esse acionista segue um segundo caminho, que é o de constituir um comitê independente para negociar os termos da operação, sem votar pela sua aprovação. É isso que a CVM recomenda no Brasil.

A avaliação de Luciana é que se a mudança tivesse ocorrido, o processo seria judicializado, pois uma vez na lei que o ônus fica para o minoritário, a CVM não poderia avaliar. Sem contar, observa, que a sugestão parece ter ignorado a diferença de jurisprudência e rapidez do Judiciário americano e brasileiro.