Valor econômico, v.20, n.4774, 18/06/2019. Opinião, p. A12

 

Desperdícios em cadeia 

Ana Carolina Pekny 

Stephanie Morin 

18/06/2019

 

 

O manejo de recursos escassos exige escolhas que considerem os custos e os benefícios de cada alternativa. Isso se torna especialmente importante quando se trata de recursos públicos em tempos de crise, tanto mais em um país cujas políticas públicas padecem de fragilidades e constantes cortes.

Assim como não é novidade que o Brasil e seus Estados passam por grave crise fiscal, tampouco são novas ao nosso cotidiano as deficiências dos serviços oferecidos à população, a carência de investimentos em prevenção da violência e as péssimas condições de muitos estabelecimentos prisionais, nos quais as facções criminosas exercem poder e recrutam novos membros em escala crescente.

Ao contrário do que sugere o senso comum, essas mazelas se encontram diretamente relacionadas, como revela estudo inédito realizado pelo Instituto Sou da Paz, em parceria com a rede Nossas Cidades e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, acerca dos custos financeiros de programas sociais fundamentais para jovens vulneráveis e das prisões cautelares na cidade de São Paulo, decretadas pela Justiça antes do fim da ação penal.

Verificou-se que, no Estado de São Paulo, quase 60 mil dos mais de 240 mil encarcerados se encontram em prisão cautelar, ao custo de R$ 76 milhões mensais ou R$ 912 milhões anuais, segundo dados fornecidos pela Secretaria da Administração Penitenciária. Além disso, determinadas regiões da cidade concentram tanto desvantagens sociais como prisões provisórias, sendo que as taxas de encarceramento provisório tendem a cair na medida em que diminui a vulnerabilidade social no território. Diante dessas cifras, vale perguntar: dada a vulnerabilidade social dos territórios de onde vêm uma parcela expressiva dos presos provisórios, os gastos decorrentes de suas prisões representam a forma mais eficiente de alocar recursos escassos?

No caso concreto da capital, em 2016 foram presos provisoriamente 90 a cada 100 mil habitantes e 67 a cada 100 mil habitantes da Brasilândia e do Jardim Ângela, respectivamente, contra a taxa de 42 por 100 mil da capital. Com duração média de cinco meses, as prisões provisórias dos 672 moradores desses distritos custaram R$ 4,1 milhões aos cofres públicos entre 2016 e 2017. Dos indicadores que revelam a vulnerabilidade social nessas regiões, destaca-se que a taxa de empregos formais a cada 100 habitantes é onze vezes menor na Brasilândia e oito vezes menor no Jardim Ângela do que a taxa da capital. Já a proporção de analfabetos e pessoas com nível de escolaridade até o fundamental incompleto chega a 46% e 55% nesses bairros, contra 35% da população da cidade de São Paulo como um todo.

A aposta no encarceramento provisório excessivo também se revela escolha duvidosa do ponto de vista da reincidência, pois as facções criminosas exercem notória influência nas prisões brasileiras, como as mortes violentas de 50 presos no Amazonas bem nos lembram. Prender cautelarmente pessoas acusadas de crimes banais ou com base em provas frágeis não só custa caro aos cofres públicos e aos afetados, como também é potencial fonte de mão de obra para o crime.

Evidência do desperdício acarretado é a absolvição ou a condenação a penas muito leves ou alternativas de parte desses presos quando finalmente são julgados. Exemplos? Marcos (nome fictício), catador de material reciclável de 37 anos, acusado de receptação de uma bicicleta roubada em junho de 2016. Ele permaneceu preso provisoriamente por um ano, ao custo de R$ 15 mil. No julgamento, foi condenado a um mês e cinco dias de prisão por receptação culposa, já que desconhecia que a bicicleta fosse produto de roubo, e colocado em liberdade.

Outro caso identificado pelo Sou da Paz envolveu Jurandir, condenado a um ano de prisão no regime semiaberto em 2016 pelo furto de três kits de xampu e condicionador que foram devolvidos quando ele foi abordado pelo dono do estabelecimento. Serralheiro de 58 anos, pardo e pai de três filhos, Jurandir permaneceu preso por 11 meses enquanto aguardava o julgamento. Se ele tivesse respondido a seu processo em liberdade, teriam sido economizados mais de R$ 14 mil, para não falar nos danos humanos e sociais consequentes da prisão.

Cumpre assinalar que os gastos com a administração penitenciária cresceram de maneira impressionante ao longo da última década no Estado de São Paulo. Entre 2010 e 2017, as despesas anuais com as prisões paulistas passaram de vultosos R$ 3,6 bilhões anuais para R$ 4,6 bilhões. Já a Secretaria da Educação viu seus gastos aumentarem somente 8% no mesmo período, ao passo que outras pastas e ações relacionadas aos jovens, que compõem expressiva parcela dos presos na capital (52%), sofreram cortes drásticos, tais como os projetos "Ação Jovem", da Secretaria do Desenvolvimento Social (-78%) e o próprio "Jovem Cidadão" (-61%).

Não se pretende transformar todas as cadeias em escolas. Tampouco se espera, num contexto em que as taxas de alguns crimes violentos permanecem altas, que recursos destinados ao encarceramento sejam redirecionados em sua totalidade para programas sociais em São Paulo. Há, porém, modos melhores e piores de manejar orçamentos, bem como medidas comprovadamente efetivas ou inócuas para combater a reincidência criminal. Priorizar gastos em prisões de pessoas que sequer foram julgadas indica um comprometimento com o desperdício de recursos e com a insegurança. Investir em receitas que podem contribuir, simultaneamente, para a redução da vulnerabilidade social, a prevenção da violência e a repressão qualificada da criminalidade sinaliza uma aposta acertada no futuro.