Valor econômico, v.20, n.4774, 18/06/2019. Especial, p. A14

 

Furto de combustíveis alimenta ganhos de refinarias clandestinas 

André Ramalho 

18/06/2019

 

 

Quem passa em frente a uma pequena loja do bairro não desconfia que, por debaixo do estabelecimento, um túnel liga clandestinamente a casa a um oleoduto da Petrobras, enterrado a poucos metros dali. A vizinhança também não sabe que as duas vans estacionadas na garagem escondem tanques cheios de combustível roubado diretamente do duto. A engenhosidade só foi descoberta quando um erro técnico no desvio provocou um incêndio. Homens feridos saíram correndo do estabelecimento e fugiram, enquanto técnicos da Transpetro e do Corpo de Bombeiros corriam até o local, na tentativa de conter o vazamento e evitar um acidente maior. O episódio, em Itaquaquecetuba, na Região Metropolitana de São Paulo, entrou para as estatísticas como mais um entre os 560 casos de furto ou tentativa de furto nos dutos da Transpetro entre 2016 e 2018.

O mercado ilegal de petróleo e combustíveis movimenta, por ano, US$ 133 bilhões no mundo, segundo estimativas da Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Assaltos a navios petroleiros por grupos piratas, roubos de oleodutos e caminhões e atividades ilegais como adulteração de combustíveis não financiam mais apenas grupos como o Estado Islâmico, no Oriente Médio, e cartéis de narcotraficantes no México. Mais recentemente, organizações criminosas brasileiras entraram no mapa mundial do tráfico de petróleo.

No Brasil, investigadores têm se dedicado a apurar até que ponto grupos milicianos da Baixada Fluminense, na região metropolitana do Rio, estão envolvidos no furto em oleodutos da Petrobras. Na outra ponta do negócio, as autoridades tentam seguir o rastro dos milhões de litros de combustíveis e petróleo bruto furtados dos oleodutos da petroleira, para descobrir quem alimenta esse crime organizado que já trouxe perdas de R$ 600 milhões para os cofres da estatal nos últimos quatro anos. O furto de petróleo e derivados dos dutos da Transpetro, a subsidiária de logística da Petrobras, é um problema que se estende a outros Estados, caso, por exemplo, de São Paulo.

No Rio, o assunto está no centro das atenções do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP-RJ). A principal linha de investigação do grupo indica que os produtos roubados têm como destino algumas unidades industriais que atuam como espécies de refinarias clandestinas.

Tratam-se de empresas legais, com CNPJ, especializadas no reprocessamento de óleos usados para produção de solventes e outros produtos químicos, como graxas e óleos para uso industrial. Segundo uma fonte envolvida nas investigações, foram identificados produtos roubados em ao menos quatro dessas unidades no eixo Rio-São Paulo-Minas. Essas companhias compram com descontos o petróleo, o diesel e a gasolina roubados - produtos considerados mais nobres do que os óleos residuais que elas costumam recolher de navios, postos e indústrias, para reprocessamento.

Essas unidades, contudo, não têm autorização para armazenar e processar petróleo. Em Duque de Caxias, às margens da rodovia BR-040, na Baixada Fluminense, por exemplo, o MP-RJ solicitou o desmonte da Reoxil, que atua na reciclagem e purificação de produtos químicos, mas que mantinha em suas instalações petróleo bruto estocado, segundo o Ministério Público. Já em Cosmópolis (SP), as autoridades apreenderam 12 caminhões com petróleo cru em uma unidade semelhante: a Super Oil Bras. Os donos das empresas foram denunciados por receptação qualificada.

As investigações começam aos poucos a traçar novas rotas em busca de outros destinos para os produtos roubados, como postos de combustíveis. De acordo com uma segunda fonte que acompanha os desdobramentos das investigações, áreas de inteligência estão debruçadas para saber para onde vai o petróleo bruto. Há indícios de que os volumes roubados não têm sido vendidos somente para unidades de reprocessamento de óleo mapeadas, mas também para fábricas de asfalto, por exemplo.

Segundo as investigações, o furto de petróleo e combustíveis nos oleodutos não é comandado por uma única organização criminosa. São diferentes grupos, que não necessariamente atuam em conjunto e que não têm o mesmo perfil de atuação. O mapa de ocorrências mostra que São Paulo, por exemplo, concentra os casos de roubo de derivados em áreas urbanas. Já na Baixada Fluminense, no Rio, o principal produto furtado é o petróleo bruto, em áreas rurais.

Os casos no Rio ocorrem numa região conhecida pela forte presença de milicianos. Há indícios de que esses grupos atuam na cobrança de pedágio das quadrilhas que desviam as cargas dos oleodutos da Transpetro. Também chama a atenção dos investigadores a constante presença de policias militares entre as organizações criminosas denunciadas, mas, segundo a fonte, o grau de envolvimento das milícias no crime ainda é objeto das investigações.

Para autoridades, agora é a hora de combater o furto em oleoduto, a fim de evitar que situação iguale a do México

Em quatro anos, 42 milhões de litros de derivados e óleo bruto foram desviados dos oleodutos da Petrobras. A realidade brasileira ainda está distante daquela vivenciada em países mais críticos, como Nigéria, Colômbia e México, mas preocupa pela escalada das ocorrências e pelos riscos associados ao crime. Em maio, morreu, em Duque de Caxias, Ana Cristina Pacheco Luciano, menina de nove anos de idade que teve 80% do corpo queimado ao cair em uma poça de gasolina depois de um vazamento ocorrido no oleoduto Orbel I, que liga o Rio de Janeiro a Minas Gerais, em uma tentativa de roubo de combustível.

Foi a partir de 2011 que a Petrobras começou a perceber uma mudança na organização dos crimes. Até então, segundo fontes, as ocorrências eram isoladas e amadoras, sem indícios de participação do crime organizado. As ocorrências só começaram a crescer a partir de 2014/2015, mas se tornaram sistêmicas, de fato, nos últimos três anos. Em 2018, a Transpetro registrou 261 casos de furto ou tentativa de furto em seus dutos em todo o país, um aumento de 15% frente a 2017 e de 262% ante 2016.

"O crime organizado percebeu que é um bom negócio. Importar quilos de cocaína envolve um custo operacional alto, mas o custo da matéria-prima, no caso do contrabando do petróleo, é zero. E os criminosos conseguem colocar muito rápido o produto no mercado", explica uma das fontes que acompanham o assunto de perto.

Segundo as investigações do MP-RJ, a organização era estruturada em núcleos, não necessariamente vinculados uns aos outros. O núcleo do Rio de Janeiro seria comandado, segundo o MP, por Denilson Silva Pessanha ("Maninho do Posto"), ex-vereador em Duque de Caxias e que se encontra foragido.

A divisão de tarefas do grupo revela o grau de organização do núcleo. De acordo com o MP-RJ, além de ser responsável pela perfuração e retirada dos combustíveis, Maninho também era encarregado de garantir o envio do produto para outros Estados, por meio de emissão de notas fiscais fraudulentas. O grupo também era composto por criminosos encarregados de traçar rotas e pela rede de contato com os motoristas que faziam o transporte; pessoas dedicadas ao fornecimento dos caminhões; pela atividade de perfuração dos dutos; integrantes responsáveis por mapear e pelo arrendamento dos terrenos mais propícios para a atividade ilegal e pela segurança armada do local.

Os criminosos utilizam a técnica da trepanação - instalação de uma derivação clandestina na tubulação perfurada sem que haja a necessidade de fechar o abastecimento do produto. Ex-funcionários de terceirizadas da Petrobras, com experiência em caldeiraria e soldagem, estão entre alguns dos envolvidos na prestação do serviço para os grupos criminosos.

A percepção entre as autoridades é de que a hora de combater o furto nos oleodutos é agora, de forma a evitar que a situação alcance a dramaticidade de países como México e Nigéria, onde explosões em dutos, decorrentes do vazamento de combustíveis roubados, já vitimaram centenas de pessoas. Num dos casos mais recentes, em janeiro, um incêndio em uma tubulação de combustível no Estado mexicano de Hidalgo deixou pelo menos 66 mortos e mais de 70 feridos no momento em que centenas de pessoas roubavam gasolina que vazava de um duto.

Neste mês, a Petrobras lançou o Programa Integrado Petrobras de Proteção de Dutos (Pró-Dutos), com o objetivo de prevenir furtos de combustíveis da malha de oleodutos operada pela Transpetro. A estatal assinou dois protocolos de intenção, um com o governo do Rio e outro com o governo de São Paulo, com o propósito de reforçar a cooperação estratégica entre as partes nas ações de inteligência e segurança. Além disso, a Transpetro mantém um programa de relacionamento com as comunidades vizinhas à rede de dutos e disponibiliza o número 168 para que a população denuncie ações de pessoas não autorizadas nos dutos

A meta da Petrobras é reduzir em 75% os furtos em seus oleodutos até 2021. Uma das propostas da estatal é desenvolver tecnologias para aprimorar a detecção e localização dos furtos. O presidente da companhia, Roberto Castello Branco, disse neste mês, durante o lançamento do programa Pró-Dutos, que pretende assinar um convênio com o Ministério da Justiça para tratar do assunto. Ele também defendeu a tipificação do crime de roubo de oleodutos com penas mais pesadas.

"O crime tem repercussões muito amplas, as externalidades negativas são enormes", afirmou o executivo, na cerimônia de lançamento do programa.

O Valor tentou, sem sucesso, contato com as empresas Reoxil e Superoilbras, citadas nas investigações do MP-RJ.