Valor econômico, v.20, n.4780, 27/06/2019. Opinião, p. A18

 

Um imposto de renda para um mundo globalizado 

Eduardo Fleury 

27/06/2019

 

 

Os planejamentos tributários abusivos com uso de paraísos fiscais e a competição fiscal entre países têm causado perda substancial na arrecadação do imposto sobre lucros empresariais. Mais ainda, as notícias de que grandes multinacionais pagam pouco imposto geram crescente sensação de injustiça. Levando em conta este cenário, em 2013, os líderes do G-20 deram um mandato à OCDE para desenvolver o projeto "Base Erosion and Profit Shifting" (BEPS), cujo objetivo é reescrever as regras internacionais de tributação, de forma a garantir que o lucro seja tributado pelos países nos quais as atividades econômicas são realizadas (source country), levando em consideração também o local onde o valor é criado.

A despeito da profundidade do trabalho efetivado no âmbito do BEPS, muitos acadêmicos e autoridades tributárias não acreditam que este projeto seja capaz de entregar o que havia sido prometido. Adicionalmente, na economia digital, o sistema de imposto sobre lucro cobrado no país de origem talvez não seja mais viável.

O Destination Based Cash Flow Tax (DBCFT) tem sido considerado como uma alternativa ao sistema vigente e, recentemente, tem ganho notoriedade fora do mundo acadêmico. Christine Lagarde, do FMI, tem incentivado o debate sobre esta opção. No mesmo sentido, Martin Wolf, do Financial Times, escreveu um importante artigo publicado no Valor apoiando a adoção do DBCFT. No Brasil, o ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, tem escrito que, ao invés de reformar o atual sistema, deveríamos estudar melhor a possibilidade da implementação do DBCFT.

O DBCFT, que podemos traduzir como Imposto de Renda Cobrado no Destino com Base no Regime de Caixa, tem como principais características: 1- a cobrança do imposto pelo país onde o consumo é efetivado; 2- o cálculo do lucro tributável com base no regime de caixa e 3- o tratamento equivalente entre o capital próprio e o de terceiros (empréstimos).

Olhando da perspectiva doméstica, a base tributável deste imposto não é diferente da atualmente adotada. Assim, o lucro tributável será determinado deduzindo-se das receitas os custos e despesas. No entanto, quando consideramos os fluxos do comércio exterior, a aplicação da cobrança no destino (país de consumo) será alcançada pela exclusão das receitas de exportação no cálculo do lucro e por não permitir a dedutibilidade das importações. Alternativamente à impossibilidade de dedução da importação, pode-se aplicar o mecanismo de "border adjustment". Neste caso, cobra-se o imposto por ocasião da importação e permite-se a dedutibilidade do valor pago pelo produto importado. A não incidência na exportação e cobrança na importação são dois pontos de semelhança entre este imposto e o IVA. No entanto, o DBCFT permite a dedução dos salários.

A exclusão das receitas de exportação da base de cálculo é o mecanismo que permite que o lucro seja tributado no país de consumo, visto que, no destino, o custo de importação não será deduzido e o valor de venda do produto ao consumidor corresponderá ao lucro. Desta forma, o país de consumo irá tributar 100% do valor do produto.

Este mecanismo anula o efeito da competição fiscal realizada por meio da redução de alíquotas, assim como afasta as vantagens da utilização de paraísos fiscais. Para explicar de forma prática, vamos supor que uma empresa decida se instalar em um país em razão de sua alíquota reduzida de IRPJ, objetivando vender para países com alíquotas elevadas. Com o DBCFT, esta vantagem desaparece, uma vez que as exportações serão isentas e o país de destino é que exercerá a tributação sobre estes valores. A tabela demonstra a situação descrita.

Importante notar que, com este sistema, os países poderiam fixar alíquotas elevadas sem que tal fato por si só leve empresas a mudar sua localização para outros países. Em outras palavras, o imposto é neutro na determinação do local do investimento.

O DBCFT também se adapta bem à economia digital. No âmbito dos negócios digitais, as empresas podem ter sede em países com baixa tributação e vender para diversos mercados sem a necessidade de ter presença física no país de consumo. No sistema atual, os países consumidores das mercadorias digitais arrecadam somente uma pequena fração em impostos, já que, sem a presença física, é difícil atribuir lucro a tais empresas. Portanto, a cobrança no país de consumo, característica principal do DBCFT, resolveria também a questão da tributação dos negócios digitais.

Outra característica do DBCFT é a tributação via cash flow. As despesas, inclusive investimentos, são consideradas na apuração do imposto na medida do pagamento. A dedução de investimentos de imediato, além de evitar regras complexas de depreciação, tem importante consequência econômica, uma vez que garante a não tributação do retorno normal do capital. De forma simplificada, o retorno normal do capital seria o preço que o poupador cobra para postergar o consumo e sua tributação pode reduzir o volume de investimento ou poupança.

É importante também destacar que, sob a sistemática do DBCFT, não é permitida a dedução dos juros no cálculo do imposto. Desta forma, há tratamento equivalente para capital próprio e de terceiros. No sistema brasileiro vigente, a dedução dos juros sobre capital próprio é uma forma de equiparar as duas fontes de capital.

Como todo sistema novo, a implementação do DBCFT tem alguns obstáculos. Por exemplo, segundo as regras do comércio internacional, a isenção das receitas de exportação, no caso de um imposto direto, seria considerada como incentivo fiscal sujeito à condenação por parte da OMC.

Outro problema relacionado ao DBCFT vem a ser sua aplicação em países cuja atividade econômica está concentrada nas exportações de commodities. Uma vez que as exportações são isentas, estes países deixariam de recolher uma importante parcela de imposto. Nestes casos, alguns estudos acadêmicos sugerem a criação de um imposto a ser cobrado pelo país de origem. Por outro lado, países exportadores de commodities tendem a importar a maior parte dos seus bens de consumo e, assim, acabariam arrecadando valores que compensariam as perdas decorrentes da exportação.

Em termos de conceito, o DBCFT transfere a arrecadação dos países de produção (source country) para os países nos quais se dá o consumo. Em princípio, tal alteração poderia ser considerada substancial, no entanto, na prática, o sistema atualmente vigente permite que empresas se "declarem" residentes em países com baixa tributação, reduzindo o pagamento do imposto tanto no país de origem, quanto no país de consumo. Os instrumentos até agora propostos pela OCDE para lidar com este tema tendem a burocratizar e encarecer ainda mais o sistema, além de contar com medidas multilaterais difíceis de se implementar. O DBCFT ataca boa parte destes problemas com eficácia e simplicidade, merecendo ser considerado como uma alternativa ao sistema atual.