Valor econômico, v.20, n.4776, 21/06/2019. Opinião, p. A11

 

Estagnação e pobreza extrema 

Naercio Menezes Filho 

21/06/2019

 

 

O Brasil obteve grande avanço nos seus indicadores sociais nos últimos 30 anos. Houve queda significativa na mortalidade infantil, pobreza, desigualdade e aumento da escolaridade. Porém, ao mesmo tempo vivemos um processo de estagnação de produtividade. Grande parte do crescimento do nosso PIB per capita nas últimas décadas ocorreu pelo aumento do número de trabalhadores empregados e não pelo crescimento da produtividade desses trabalhadores. Será que essa estagnação estrutural coloca em risco os avanços sociais obtidos nas últimas décadas? Como podemos sair desse processo de estagnação de longo prazo?

Um dos avanços mais significativos obtidos no passado recente foi a redução da pobreza extrema. Para definir a porcentagem de pessoas extremamente pobres, temos que usar uma linha de indigência, que define a renda mensal mínima suficiente para que as pessoas possam suprir suas necessidades calóricas básicas. Nesse artigo usamos as linhas de indigência produzidas pela economista Sonia Rocha, que leva em conta diferenças de custo de vida entre regiões. As pessoas com renda familiar per capita abaixo da linha de indigência não ganham o suficiente nem para se alimentar adequadamente.

A figura ao lado mostra a porcentagem de pessoas na pobreza extrema por idade em três momentos do tempo: 1990, 2015 e 2017. Podemos verificar que em 1990, logo após a promulgação da Constituição de 1988, mais de ¼ das crianças brasileiras com até 9 anos estavam na pobreza extrema. Obviamente, a maioria dessas crianças não teve condições de desenvolver as habilidades cognitivas e socio-emocionais necessárias para o aprendizado adequado. Hoje em dia, elas estão com cerca de 24 anos, grande parte delas sem estudo nem trabalho, muitas delas no crime. Podemos notar também como a pobreza diminui ao longo da vida quando as pessoas começam a trabalhar, mesmo que seja no setor informal ou por conta-própria.

Entre 1990 e 2015 a redução na pobreza extrema em todas as idades foi impressionante. Em 2015, 5% das crianças eram indigentes, 2,5% dos adultos e praticamente nenhum idoso. O que aconteceu entre esses anos? Entre os idosos o principal mecanismo foi a introdução do BPC e a mudança nas regras da aposentadoria rural, que passaram a ser indexados ao salário mínimo, que aumentou muito nesse período. Entre as crianças, os principais fatores foram a introdução e expansão do programa Bolsa-família e o forte aumento da renda do trabalho entre as famílias mais pobres nos anos 2000.

Mas, o que ocorreu com a pobreza com a grave crise dos últimos anos? Houve um aumento da pobreza extrema, como era de se esperar, mas estamos muito longe de retroceder aos níveis observados nos anos 90. A taxa de pobreza extrema entre as crianças passou de 5% para 8%, entre os adultos passou de 2,5% para 5% e praticamente não houve alteração entre os idosos, já que sua aposentadoria está indexada ao salário-mínimo, que manteve seu poder de compra. Entre as crianças e adultos, não houve grande retrocesso porque o programa Bolsa-família manteve seu valor real e, apesar do aumento do desemprego, não houve grande redução de salários na economia. Além disso, as crianças que moram com os avós, também conseguem escapar da pobreza.

Assim, as únicas famílias que se tornaram extremamente pobres na crise são aquelas em que tanto o chefe como o cônjuge ficaram desempregados, que ainda não recebem transferências do programa Bolsa-família, aposentadorias nem BPC. Felizmente, esses domicílios representam uma pequena parcela da sociedade hoje em dia. Vale notar que grande parte dos desempregados são filhos que moram com os pais e que, portanto, não afetam muito a renda domiciliar per capita. Além disso, a estratégia saúde da família e o SUS melhoraram muito as condições de saúde das famílias mais pobres. Nos anos 80, uma crise nessas proporções teria provocado grande aumento na mortalidade infantil e migrações em massa. A construção dessa rede de proteção social foi um dos principais avanços da sociedade brasileira nas últimas décadas.

Para aperfeiçoar essa rede é preciso aumentar o valor do programa Bolsa-família e expandi-lo para as famílias que ainda não são atendidas. Para obter recursos para isso, não é necessário desvincular as aposentadorias e o BPC do salário mínimo, a fim de diminuir o valor real desses benefícios ao longo do tempo, mas sim aumentar os impostos sobre os mais ricos e eliminar todos os subsídios e gastos públicos que não melhoram a vida dos mais pobres.

E o futuro? Apesar dos avanços sociais, a produtividade cresce muito pouco há décadas. Não há perspectivas de crescimento da renda média entre as gerações. Além disso, sem aumento de arrecadação, ficará cada vez mais difícil sustentar os programas sociais. Mas, a economia brasileira sofre de uma incapacidade crônica para crescer. Os investimentos em capital, tecnologia e P&D são muito baixos no setor privado, apesar dos vários programas de incentivos à inovação.

Os períodos de crescimento econômico no Brasil geralmente estão associados a booms de commodities. Isso se deve principalmente à falta de concorrência entre as empresas em todos os setores. Nos EUA, a maior parte do crescimento de produtividade se dá através da abertura de firmas inovadoras e fechamento das firmas ineficientes. Isso não ocorre com a força suficiente no Brasil nem nos demais países da América Latina.

Em suma, desde a Constituição de 1988, sucessivos governos construíram uma rede de proteção social para os mais pobres em momentos de crise. Entretanto, o país enfrenta uma incapacidade crônica de crescer por conta própria, que decorre basicamente da falta de concorrência no setor privado. Sucessivos governos afirmam que vão abrir a economia e eliminar favores e subsídios para as empresas, mas isso nunca acaba acontecendo.

O governo precisa estimular o setor privado a investir, para compensar a queda dos investimentos públicos decorrente da PEC do teto.