Luísa Martins
30/07/2019
Em discussão no Congresso Nacional, uma das sugestões de texto para a Nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental praticamente acaba com a descoberta de novos sítios arqueológicos no país. O alerta foi feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em nota técnica enviada à Câmara dos Deputados, no qual um grupo de trabalho analisa o marco legal do licenciamento e reúne sugestões para aperfeiçoá-lo.
O projeto de lei (PL) limita a participação de entidades como o Iphan em estudos sobre os impacto das grandes obras de infraestrutura no ambiente e no patrimônio cultural. De acordo com texto elaborado pelo relator, deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), a participação das autoridades só está prevista quando existirem bens culturais formalmente catalogados, já tombados ou protegidos por lei.
O Iphan pondera que, ao estabelecer essa restrição, ignora-se que 95% dos bens arqueológicos do Brasil são descobertos justamente durante o processo de licenciamento ambiental, uma vez que, por sua natureza, em geral estão debaixo da superfície.
"Na prática, resultará na impossibilidade de preservação dos bens culturais acautelados pelo Iphan no processo de licenciamento ambiental, especialmente na incapacidade absoluta de preservação do patrimônio arqueológico, bem cultural protegido por lei e que, conforme a Constituição, é um bem da União de caráter finito, difuso e não renovável", escreveu a autarquia.
O Iphan diz ainda que essa versão do PL representa "grave mácula à memória nacional", ao desconsiderar a viabilidade de identificação de bens culturais acautelados em áreas que nem sequer foram avaliadas antes da instalação do empreendimento.
O documento é assinado pelo coordenador substituto da Coordenação Nacional de Licenciamento do Iphan, Roberto Stanchi, e pela diretora substituta do Centro Nacional de Arqueologia, Danieli Helenco. O encaminhamento à Câmara foi feito pelo próprio presidente substituto da autarquia, Andrey Schlee.
De 2016 para cá, o número de empreendimentos analisados pelo Iphan durante processos de licenciamento ambiental foi de 10.636. Uma simulação feita pelo próprio órgão estimou que, se essa versão do projeto estivesse em vigor neste mesmo período, seriam avaliados apenas 148 - uma queda de 98,6%.
O Iphan não teria participado, por exemplo, de qualquer processo de licenciamento ambiental das grandes hidrelétricas erguidas na Amazônia nos últimos anos, deixando de identificar 198 sítios arqueológicos na região de Belo Monte - alguns com datação de 10 mil anos. Também não teriam sido descobertas, na área da hidrelétrica Teles Pires, gravuras rupestres feitas há mais de 5 mil anos.
A redação do PL também manteria soterrado o mais recente sítio arqueológico inserido na lista de patrimônio mundial da Unesco: o Cais do Valongo, construído em 1811 e redescoberto dois séculos depois, durante as escavações para as obras do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro. É considerado vestígio material de uma época em que populações africanas eram trazidas de navio para serem escravas no Brasil. "A identificação deste bem cultural acautelado de relevância mundial só foi possível em função da participação do Iphan no processo de licenciamento", diz a nota.
Há uma outra versão do projeto, segundo a qual não é preciso exigir o reconhecimento formal dos bens culturais para que haja a intervenção do Iphan. Ainda assim, órgãos de proteção verificaram problemas, como a omissão em relação às áreas de entorno dos empreendimentos. Todas as sugestões de texto ainda estão sendo discutidas no Legislativo.
Os encaminhamentos do grupo de trabalho sobre a Nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental são acompanhados de perto pelo Ministério Público. Em Minas Gerais, Estado com o maior número de bens tombados no Brasil (sendo quatro patrimônios culturais da humanidade, segundo a Unesco), uma coordenadoria criada especialmente para analisar o tema já detectou suas principais preocupações.
Uma delas é o prazo, considerado exíguo, de 30 dias para a manifestação do Iphan. Além disso, tal parecer teria caráter meramente consultivo - isto é, as obras poderiam ser iniciadas a despeito dele, diante da falta de obrigatoriedade de ser levado em conta pelo órgão licenciador.
"Isso causa espanto. Como dizer que um empreendimento é ambientalmente viável se o seu licenciamento deixou de olhar para o ambiente cultural? O empreendimento sustentável é aquele que respeita o ambiente em cada um de seus aspectos - natural, urbanístico e cultural", disse ao Valor a promotora Giselle de Oliveira, coordenadora das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais.
Ela também chama a atenção para o fato de o PL não prever a avaliação dos bens culturais localizados no entorno da obra, a chamada " área de influência". Dessa forma, a promotora exemplifica, o Iphan não participaria do licenciamento de uma grande fábrica erguida ao lado de uma igreja tombada. "Não seria possível, pelo texto atual, que o Iphan determinasse medidas de mitigação, como a instalação de um filtro na chaminé ou de contenções de vibração, para evitar que o empreendimento prejudique a estrutura da igreja ou até mesmo a faça ruir", alerta.
Procurado, Kataguiri disse que ainda não havia atentado para os temas dos questionamentos feitos pelo Valor. "Agradeço por ter levantado esses pontos. Vou conversar com o Iphan para que a gente construa o melhor texto possível; para que não fique abrangente, a ponto de o Iphan ter de opinar em todo licenciamento, nem restritivo demais. Como está no período de consulta pública, é bom que as pessoas chamem a atenção para os seus respectivos setores", afirmou.
Flexibilizar as regras do licenciamento ambiental é uma bandeira do presidente Jair Bolsonaro, para quem a norma atual "atrapalha" os planos dos gestores públicos para a área de infraestrutura. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-SP), também tem dito que o tema está entre as suas prioridades.
O projeto relatado por Kataguiri, designado nominalmente por Maia, já tem urgência aprovada e não deve passar pelas comissões, mas seguir direto ao plenário. Maia já afirmou que pretende pautar o tema na volta do recesso. Antes de ser enviado à sanção presidencial, o texto precisa ser aprovado pelo Senado.