Valor econômico, v. 20, n. 4803, 30/07/2019. Opinião, p. A15

 

As raízes da crise de Porto Rico

Anne Krueger

​30/07/2019

 

 

Porto Rico está em crise mais uma vez, tanto política quanto economicamente. Território dos Estados Unidos com mais de 3 milhões de habitantes, a ilha tem uma população maior que a de muitos Estados americanos. Mas sua população e produção real (corrigida pela inflação) têm caído desde 2006. Mais da metade dos porto-riquenhos nativos saíram da ilha, a maioria com destino aos EUA continentais. A renda per capita do território corresponde a cerca de metade da renda do Estado americano mais pobre, o Mississippi.

Embora a economia porto-riquenha tenha alcançado níveis catastróficos em 2016, seus problemas remontam a um passado mais distante. Nos últimos dez anos, governos sucessivos que prometeram orçamentos equilibrados foram sistematicamente obrigados a tomar empréstimos após suas estimativas terem se mostrado exageradamente otimistas. No final, Porto Rico não conseguiu honrar o pagamento de suas dívidas. Em 2015, seu endividamento per capita era de mais de US$ 16 mil, comparativamente à média dos 50 Estados americanos, de US$ 1.473, e seu governo ainda contabilizava grandes passivos.

Depois, em junho de 2016, o Congresso aprovou a lei conhecida como Promesa pelas iniciais em inglês (the Puerto Rico Oversight, Management, and Economic Stability Act), o que fez com que Porto Rico ingressasse num regime jurídico análogo ao de falência, sob a fiscalização de um recém-criado Conselho Financeiro de Supervisão e Administração (Fomb, nas iniciais em inglês), encarregado de aprovar os orçamentos do território. Em 2017, a ilha deixou de honrar sua dívida, e se instauraram disputas jurídicas desde então.

A economia porto-riquenha teve uma série de problemas estruturais antes de 2016. Mas o Fomb, como o nome sugere, não tinha poderes para enfrentá-los, e não podia obrigar o governo da Commonwealth (comunidade) americana a fazer isso. E, o que é pior, justamente quando a Fomb começou a operar, os furacões Irma e María se abateram sobre a ilha, em 2017, enfraquecendo ainda mais sua economia.

A rede de energia elétrica ficou destruída e a central elétrica estatal, a Prepa, após muitos anos de prejuízos, não conseguiu articular uma reação adequada. Além de deixar alguns habitantes sem energia elétrica por quase um ano, as tempestades reduziram o acesso às estradas e impediram a distribuição de ajuda humanitária por várias semanas.

Agora explodiu uma crise política. A causa imediata foi a divulgação de mensagens particulares nas quais o governador, Ricardo Rosselló, se referiu a vítimas do furacão María e outros grupos usando termos degradantes e depreciativos. Rosselló renunciou ao cargo. Mas acusações de corrupção e a precariedade do desempenho têm alimentado insatisfação generalizada da opinião pública de toda a ilha, o que desencadeou a renúncia de várias outras graduadas autoridades.

(...)

A exemplo de suas fragilidades econômicas, os problemas políticos de Porto Rico são profundos. Sua estrutura singular de governança permite que tanto o governo porto-riquenho quanto o governo federal dos EUA atribuam um ao outro os problemas da ilha. Quando o governo federal concede o crédito fiscal proporcional à renda recebida [crédito fiscal reembolsável concedido a trabalhadores de baixa e média renda, de acordo com seus rendimentos e número de filhos, EITC em inglês], a medida abrange somente os habitantes dos Estados americanos, não os porto-riquenhos. Apesar de a Lei Federal da Assistência Médica Acessível (Obamacare), oferecer o Medicaid [assistência médica às populações de baixa renda e a pessoas com necessidades especiais] a porto-riquenhos aptos a recebê-lo, as subvenções concedidas à ilha são pequenas demais para cobrir os custos (e o Congresso dos EUA desde então reteve US$ 12 bilhões, devido a acusações de corrupção).

Além disso, a ilha está sujeita à Lei Federal Jones de 1920, que, ao exigir que o território utilize embarcações de propriedade e operadas pelos EUA para remessas com destino aos EUA continentais e as lá originadas, torna os custos de transporte marítimo muito mais elevados que os dos países vizinhos do Caribe. E, apesar da baixa renda, Porto Rico está sujeito ao salário mínimo federal. Com isso, muitos trabalhadores não conseguem sair do setor informal.

Mas o governo federal também pode apontar falhas causadas exclusivamente por Porto Rico. Por exemplo, a legislação trabalhista da ilha exige que os empregadores concedam bonificações anuais no valor de um salário mensal, o que eleva o salário mínimo para níveis superiores aos praticados no continente. Os porto-riquenhos também se beneficiam de políticas exageradamente generosas de licença anual (alguns dias de folga adicional anuais), licença médica e pagamentos de rescisão. Além disso, o registro de imóveis da ilha é lamentavelmente obsoleto. E no período de 30 anos após 1980, as autoridades elevaram o número de professores em 25%, embora o número de alunos tenha caído pelo menos na mesma proporção. Esse incremento contribuiu para o crescimento cada vez maior dos compromissos financeiros com aposentadorias.

A economia porto-riquenha foi lenta em se recuperar dos furacões dos últimos anos. Mas, mesmo se ajudas viessem a gerar um ou dois anos de crescimento econômico, os problemas políticos e econômicos da ilha continuariam a voltar à tona enquanto os problemas estruturais subjacentes não fossem resolvidos.

O governo dos EUA deveria avaliar a possibilidade de estender o EITC a Porto Rico, de isentar a ilha do cumprimento da Lei Federal Jones, e de permitir flexibilidade com relação ao salário mínimo. E, de sua parte, Porto Rico precisa corrigir os excessos de generosidade de sua legislação trabalhista, a fim de permitir o ingresso dos trabalhadores no setor formal. Precisa também fortalecer e expandir sua capacidade de supervisão a fim de reduzir a corrupção e impedir o desperdício, a fraude e o abuso. Precisam ser realizadas muitas reformas estruturais.

Uma boa crise, diz-se, nunca deve ser desperdiçada. Porto Rico passa por várias crises, todas as quais requerem que o território centre precisamente o foco em seus problemas estruturais mais profundos. Apenas ao enfrentá-los ele poderá melhorar suas perspectivas de longo prazo e garantir tanto estabilidade política quanto econômica no futuro. (Tradução de Rachel Warszawski)

Anne O. Krueger, ex-economista-chefe do Banco Mundial e ex-primeira vice-diretora-executiva do Fundo Monetário Internacional, é professora pesquisadora-sênior de economia internacional da Faculdade de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins. Copyright: Project Syndicate, 2019.

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