Valor econômico, v.20 , n. 4802, 27/07/2019. Opinião, p. A12

 

O Brasil conhece os Brasis?

Juliana Leitão

27/07/2019

 

 

O Brasil é um país diverso e a diversidade é um ativo, mais que belo, estratégico. Porém, o país acabou traduzindo esse ativo em desigualdade, de muitas ordens, afetando as pessoas ao longo da vida. A desigualdade não é fato dado e exógeno, distante e acidental. Ela é fruto das escolhas do país. Não raras vezes, a desigualdade é produzida ou ampliada por políticas públicas mal desenhadas. Para superá-la, em primeiro lugar, é preciso admitir que a desigualdade é nossa e que nós a (re)produzimos. Em segundo, que as soluções passam pelas escolhas que o país fará.

Um dos meios mais efetivos para enfrentar a desigualdade é a educação, área que é reconhecida como importante por todos, mas historicamente pouco priorizada. Há diversos assuntos relevantes em discussão no país. Porém, tendo em vista nossos indicadores, nada é mais urgente que investir em educação. Diferentemente da área da saúde ou da segurança pública, em que a perda é imediata, concreta e visual; na educação sem qualidade, a morte é lenta e os erros das políticas públicas afetam o tempo presente, mas em especial, o tempo futuro; individual e socialmente.

O fato é que um conjunto de pessoas não está tendo garantido seu direito à educação. Há pessoas ficando para trás, especialmente adolescentes e jovens, e é fundamental que a sociedade se mobilize em torno do assunto. Local de moradia, cor e sexo não podem definir o futuro dos cidadãos. Algumas pessoas já foram perdidas pelo caminho. O Atlas da Violência, divulgado recentemente, mostrou que, em 2017, 55% dos homicídios ocorreram entre homens jovens, a maior parte das vítimas de homicídios não tinha o ensino fundamental completo e a imensa maioria assassinada era negra. Outras pessoas, sem suficiente educação formal de qualidade, seguem para uma vida adulta cheia de restrições, criando estratégias em busca do tempo perdido.

Mas, afinal, quem são os adolescentes e jovens que estão ficando para trás? Podemos qualificar esse público por, pelo menos, duas perspectivas: os que estão no sistema educacional e apresentam baixos níveis de aprendizagem e os que deixaram a escola com baixa instrução. Os indicadores da Pnad Contínua de 2018, pesquisa realizada pelo IBGE, divulgada em junho, nos oferece uma visão ampla também daqueles que estão fora do sistema de ensino. Por isso, sua importância. Ela tem muito a nos dizer neste momento.

Aproximadamente 8% da população de 15 a 17 anos não frequentavam escola e não tinham educação básica, totalizando um contingente de aproximadamente 750 mil jovens. Desses, 60% não tinham chegado a concluir o ensino fundamental, percentual bem mais elevado que o observado para o restante da população adulta, e cerca de 70% dos responsáveis dos domicílios em que esses jovens moravam não concluíram o ensino fundamental; 15% deles sem instrução.

(...)

O perfil desse jovem é claro; a desigualdade, também, sob quaisquer ângulos que se olhe. Os percentuais de jovens que estavam fora da escola eram maiores entre os negros, moradores no Nordeste e no Norte e entre os homens. Dos que estavam frequentando a escola, também existem diferenças expressivas por esses três recortes. Por exemplo, observamos que a diferença da taxa líquida de frequência - que mede a proporção de jovens de 15 a 17 anos no ensino médio, o que seria o adequado - entre negros e brancos é de 12 pontos percentuais. Isso quer dizer que, quando está na escola, a população negra se encontra em defasagem escolar.

O quadro de fragilidade, em particular para essa faixa etária, é agravado por outro dado que a Pnad Contínua traz: 33% dos jovens de 15 a 17 anos estavam fora da escola por falta de interesse, o que confirma a inadequação da escola que oferecemos aos nossos jovens. Sim, estamos diante de uma responsabilidade imensa.

Apesar de o quadro parecer mais desafiador entre os jovens de 15 a 17 anos, há muito ainda a ser feito para o grupo mais novo. O país venceu os obstáculos para ampliar o acesso de crianças e adolescentes ao ensino fundamental. Temos 98% de pessoas de 6 a 14 anos frequentando esse nível de ensino. Porém, frequência não significa conclusão: 25,3% dos jovens de 16 anos não completaram esse nível de ensino em 2018, e o percentual, de novo, é maior para negros, moradores do Nordeste e do Norte e entre os homens. Ou seja, mesmo no ensino fundamental em que o Brasil avançou muito nas últimas décadas, a desigualdade entre negros e brancos, moradores do Nordeste e Norte e restante do país e mulheres e homens ainda está presente, oscila, mas é persistente.

As diferenças entre os grupos vêm diminuindo desde 2012, no fundamental e no médio. Não se nega o avanço. Mas a velocidade está sempre aquém das necessidades de um país com os indicadores que tem. Enquanto não dermos um salto seguiremos produzindo e reproduzindo um padrão de desigualdade e exclusão.

Os Brasis do Brasil têm essa cara. Uma pergunta sempre fica em aberto: até que ponto a população brasileira conhece, de fato, os números e os significados da desigualdade educacional brasileira? E até que ponto é capaz de se mobilizar? É provável que a população não conheça a magnitude do problema e das diferenças, apesar das suas experiências cotidianas e percepções.

Nesse sentido, há que se comemorar o esforço de mobilização de organizações da sociedade civil, que vêm dando concretude à formulação de políticas educacionais, apresentando evidências, propostas e caminhos para implantação de políticas efetivas. Isso é um gigantesco avanço na qualificação e disseminação da informação para a população. Há mobilização social em torno da urgência em se efetivar os consensos e as convergências. E isso é muito. O tempo da urgência é também o tempo dos sonhos de adolescentes e jovens. Pessoas sonham. Políticas públicas garantem direitos e transformam sonhos em oportunidades. A educação é o meio mais poderoso para que eles se realizem.

Juliana Leitão é especialista em políticas educacionais da Fundação Roberto Marinho.