Valor econômico, v.20, n.4791, 12/07/2019. Brasil, p. A2
'Agenda da austeridade' aumenta desigualdades na área de saúde
Leila Souza Lima
12/07/2019
Estudo inédito elaborado por 12 instituições lideradas por Harvard analisa os primeiros 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS), apontando perspectivas para o setor com base em projeções e na situação fiscal brasileira. Os pesquisadores destacaram quatro indicadores — mortalidade infantil, cobertura pré-natal, cobertura pela Estratégia Saúde da Família e mortalidade evitável por doenças cardiovasculares — em face de quatro cenários: o primeiro sob vigência da Emenda Constitucional 95 (teto dos gastos), com transferências federais corrigidas apenas pela inflação dos 12 meses anteriores, e os demais com repasses incorporando crescimentos de 1%, 2% e 3% do PIB. No primeiro, todos os índices pioraram, sobretudo para os municípios menores e mais pobres, com menor capacidade de arrecadação e maior dependência de verbas da União.
E, embora os resultados já indiquem deterioração dos quatro indicadores de saúde no quadro de transferências constantes, em que o financiamento não aumenta, a situação atual já é considerada pior pelos especialistas em razão do avanço das políticas de austeridade no novo governo.
“O primeiro cenário é bem conservador, mas hoje estamos pior. As restrições fiscais implementadas a partir de 2016 marcaram o início de um período de retrocesso nas conquistas obtidas pelo sistema universal de saúde. Mas em paralelo temos novas diretrizes ambientais, educacionais e de saúde do governo [Jair] Bolsonaro que podem reverter muito rapidamente os progressos, comprometer a sustentabilidade do SUS e a capacidade de cumprimento da obrigação constitucional na prestação de cuidados de saúde às populações”, diz o sanitarista Adriano Massuda, que participou do estudo como pesquisador da Harvard T.H. Chan School of Public Health e consultor da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS).
Os cálculos e conclusões estão no artigo “Sistema Único de Saúde no Brasil: os primeiros 30 anos e perspectivas para o futuro”, publicado hoje pela revista científica na área médica “The Lancet”.
Além de Harvard, o trabalho teve participação de dez universidades — do Brasil, dos EUA e do Reino Unido — e colaboração da Opas/OMS. As projeções partem do momento em que as medidas implementadas pela Emenda 95 passaram a valer e se estendem até 2030, horizonte da “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, no que seria um contraponto a uma “agenda da austeridade”. Lançado em 2015 pelas Nações Unidas, o documento marcou o comprometimento de países-membros com medidas transformadoras para promover o desenvolvimento sustentável em 15 anos.
Segundo Massuda, as transferências de recursos federais para municípios foram escolhidas como variante porque são determinantes da capacidade das cidades para que produzam — e entreguem com eficiência — os serviços de saúde. “Os municípios colocam sua parte, mas, se não houver indução federal, principalmente no caso das localidades menores, há perspectivas reais de descontinuidade no atendimento público”, ressalta o especialista.
Para modelar as projeções, os especialistas levantaram o histórico das transferências federais às cidades e informações administrativas e de órgãos de saúde, moderando os cálculos com comparações do desenvolvimento dos municípios — nas faixas situadas entre menos de 5 mil e mais de 50 mil habitantes —, ao usar o Indicador de Qualidade Institucional Municipal (IQIM).
“Coletamos também outras variáveis, como PIB municipal, cobertura pelo Bolsa Família e acesso à atenção primária”, explica Marcia Castro, professora titular de Demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População na Harvard T.H. Chan School of Public Health.
Sobre essa base, os pesquisadores fizeram leituras e criaram por exemplo um dado da disparidade na mortalidade infantil entre os municípios menores e maiores, que aumenta progressivamente se mantidas as restrições fiscais. “A curva de deterioração se aplica a todos os indicadores. À mortalidade infantil, que é uma “proxy” importante do nível de saúde de uma população; à cobertura pré-natal, que mede ações preventivas; à cobertura pela estratégia Saúde da Família, que retrata a atenção primária; e à mortalidade evitável por doenças cardiovasculares, potente indicador de qualidade no atendimento”, diz Marcia.
A mortalidade infantil foi o primeiro item considerado por causa de sua capacidade de traduzir os cenários. “Quando nada se sabe sobre um país, esse indicador pode espelhar se ele vai bem ou mal na área de saúde.”
A pesquisadora de Harvard afirma que, ao optarem por medir o impacto das mudanças nas transferências federais para os municípios, os estudiosos já tinham elementos para concluir que a situação da saúde no país iria se precarizar, antes mesmo de o modelo de projeções ser rodado. Mas o agravante, observa, é que o atendimento não só tende a piorar, mas com aumento da desigualdade entre as regiões, invertendo movimento recente de melhoras — consequentemente com as populações pobres mais marginalizadas e castigadas por falta de atenção básica.
Apesar de reconhecer que não é só o financiamento o que importa para manter de pé um sistema universal de saúde, Adriano Massuda ressalta que esse fator é prioritário e aponta que, paradoxalmente, houve uma mudança no perfil do Ministério da Saúde na disputa por recursos para as ações da pasta. “Esse quadro mudou a partir de 2016, com a aceitação dentro do ministério do discurso da austeridade. Os gestores falam ‘é isso mesmo’, concordando com a ideia de se questionar a universalidade. Todo o avanço na área de saúde ocorreu pela busca da universalidade. Quando se começa a questionar isso, a direção é claramente de retrocesso.”
Ex-secretário-executivo-adjunto do Ministério da Saúde e ex-secretário da pasta em Curitiba, o sanitarista pondera que as projeções que constam do estudo liderado por Harvard são tendências e que, no caso daquelas que se concretizem retrocessos, há possibilidades de que sejam revertidas. Mas não sem que isso implique altos gastos e sem a garantia de injeção de mais recursos.
“A implantação do SUS está relacionada a mudanças na atenção primária, dentro de perfil muito particular, um modelo brasileiro. Veio acompanhada da estratégia Saúde da Família, de ações territoriais de vigilância com papel importante dos agentes de saúde, da redução da mortalidade infantil, de sucesso em políticas de imunização e erradicação de doenças. O SUS surgiu do diálogo com a sociedade. Fomos criativos ao superar adversidades, e isso deveria ser preservado”, afirma Massuda.
Para o estudioso, no Brasil os governos ainda veem saúde pública como gasto, não como investimento que traz retorno inclusive para o avanço da economia. “Pessoas produtivas consomem mais e não entram no chamado ciclo catastrófico das grandes despesas com tratamentos de doenças, o que gera empobrecimento. Mas essa é apenas uma dimensão do gasto em saúde. A outra é que gera investimentos em tecnologia, movimenta complexos industriais, serviços e empregos. Não é pouco.”