Valor econômico, v.20, n.4791, 12/07/2019. Brasil, p. A6

 

Ligar crédito estudantil à renda futura é melhor saída, dizem analistas 

Estevão Taiar 

12/07/2019

 

 

Condicionar empréstimos para a formação universitária à renda futura do estudante é uma maneira de ampliar o acesso ao ensino minimizando riscos de desequilíbrios das contas públicas. O modelo é mais eficaz do que o simples pagamento parcelado dos empréstimos após a formatura do estudante, sem levar em conta os seus rendimentos, segundo especialistas de diversos países reunidos nos últimos dois dias em evento promovido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

"O sistema baseado na renda funciona como um seguro para o estudante", diz Paulo Meyer Nascimento, pesquisador do Ipea. A ideia é que o empréstimo só comece a ser pago quando o ex-universitário atingir um patamar mínimo de renda. "Quando não tiver essa renda, não vai pagar. Isso não se transforma em inadimplência. Nesse caso, são existe a figura jurídica da inadimplência."

A principal referência para os especialistas é o australiano Higher Education Loan Program (Programa de Empréstimos para o Ensino Superior em tradução livre, ou Help na sigla em inglês), que está completando 30 anos e inspirou modelos similares no Reino Unido e na Nova Zelândia.

No Help, quem recebe até 45,8 mil dólares australianos anualmente (o equivalente a R$ 122 mil) é isento de pagamento. A partir daí, a porcentagem da renda anual a ser paga parte de 1% e cresce à medida que os rendimentos do trabalhador aumentam. Caso a renda volte a cair, ele pagará a alíquota correspondente. O desconto é feito diretamente pelo empregador na folha de salário.

São 18 patamares de renda, e a alíquota máxima é de 10%, para quem ganha acima de 134,5 mil dólares australianos (R$ 351 mil). Os pagamentos são feitos com juros menores do que os de mercado.

"No sistema em que as pessoas precisam pagar ao longo do tempo, as circunstâncias não importam. Tanto faz se elas perderam o emprego, ficarem doentes", afirma Bruce Chapman, PhD em economia pela Universidade de Yale (EUA), professor da Universidade Nacional da Austrália e considerado o criador do Help.

Na média, o governo australiano financia 58% dos custos da formação universitária, enquanto o estudante arca com os 42% restantes - seja a faculdade pública, seja privada. Cursos que normalmente levam a rendimentos maiores no futuro ou que tenham despesas mais altas (como medicina e direito) exigem desembolsos maiores dos estudantes ao longo do tempo.

"Para o governo, a vantagem é que ele praticamente só subsidia aqueles que ao longo da vida não têm condição de pagar de volta", afirma Chapman.

Uma das principais vitrines dos governos petistas, o Fies chegou a financiar a formação universitária de mais de 700 mil alunos em seu auge, em 2014. Entretanto, a recessão escancarou falhas na modelagem do programa, como muitas vezes o estabelecimento de juros abaixo da inflação. Neste ano, as dívidas do Fies com o Tesouro Nacional atingiram R$ 13 bilhões.

Outro dos maiores problemas do programa, de acordo com Nascimento, do Ipea, era justamente o fato de o pagamento dos empréstimos não ter nenhuma relação com os rendimentos dos estudantes. No ano retrasado, o programa foi reformulado, e as mudanças estabeleceram em linhas gerais maior vinculação do pagamento à renda, segundo ele.

Essas alterações, entretanto, ainda não entraram em vigor. O pesquisador destaca dificuldades para criar um sistema de "coleta automática em relação à renda do indivíduo", já que parte dos rendimentos pode estar ligada a aplicações financeiras, e não ao trabalho, por exemplo. Além disso, há a possibilidade de o histórico de volatilidade das taxas de juros brasileiras encarecer os juros subsidiados, de acordo com Nascimento.

Chapman ainda chama a atenção para um problema que "a Austrália demorou 25 anos para resolver": a migração de estudantes beneficiados pelo Help para outros países, o que levou a uma série de calotes.

Com um sistema mais próximo ao brasileiro, os Estados Unidos viram as dívidas estudantis crescerem a ponto de se tornarem um dos temais centrais da campanha para a eleição presidencial do ano que vem. Pré-candidatos do Partido Democrata à Casa Branca como os senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren têm apresentado planos para o cancelamento desses débitos. O montante chegou a US$ 1,5 trilhão (ou 7,5% do Produto Interno Bruto americano) neste ano, atingindo mais de 44 milhões de estudantes, segundo o Federal Reserve (banco central dos EUA).

"O importante é tornar o empréstimo estudantil o mais seguro possível", diz Susan Dynarski, professora de políticas públicas, educação e economia da Universidade de Michigan e PhD em economia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), ambos nos Estados Unidos.

"Para conceder esse empréstimo a um estudante que pode largar a universidade, é necessário um programa forte ligado à renda, como há na Austrália. Isso dá garantia às pessoas caso elas tenham reveses no mercado de trabalho."

De acordo com ela, os riscos de que esses estudantes acabem altamente endividados são ainda maiores em países como Estados Unidos e Brasil, que adotaram uma ampla política de acesso ao ensino superior, financiando a formação inclusive de alunos que tiveram notas mais baixas no ensino médio.

"Se só dermos os empréstimos, sem mecanismos de proteção, é ainda mais arriscado para eles", diz. "Um estudante de baixa renda, vindo de uma família sem oportunidades, pode ser obrigado a largar a faculdade após um semestre e ficar em uma situação financeira muito delicada."