Valor econômico, v.20 , n. 4790, 11/07/2019. Opinião, p.A18

 

Ensinamentos da revolução agrícola brasileira

Carlos Luque

Simão Silber

Roberto Zagha

11/07/2019

 

 

O Brasil perdeu sua capacidade de crescimento. Uma economia crescendo a uma das taxas mais altas do mundo levou um tombo do qual não se recuperou: desde 1980 o PIB aumentou 2,3% ao ano. Um crescimento da renda per capita de apenas 1%.

A estagnação econômica brasileira encobre desvios importantes. Nas ultimas 4 décadas o PIB industrial caiu a uma taxa de 0,5% ao ano, mas a Embraer se tornou o 4º maior fabricante de aeronaves no mundo. A Petrobras, uma empresa tecnologicamente sofisticada, cresceu num Brasil que não cresceu. Há outros exemplos no setor público e privado. Mas o caso mais espetacular é o da agricultura.

Nos últimos 40 anos o PIB agrícola aumentou a 3.3% ao ano, dobrando a cada 20 anos. De importador de alimentos, o Brasil se tornou o maior exportador mundial. Agora é um dos 5 maiores produtores mundiais de 36 produtos agrícolas, com produtividade entre as mais altas no mundo. Esta façanha foi possível apesar de dificuldades agroclimáticas, distribuição desigual de terras e uma população rural com pouco capital humano.

A transformação da agricultura brasileira é tema do livro: "Feeding the World" dos professores Francisco V. Luna (USP) e Herbert Klein (Stanford). O livro é ao mesmo tempo uma enciclopédia de dados e estudos sobre a transformação da agricultura brasileira e uma análise lúcida das estratégias e políticas governamentais que a tornaram possível. Ele também contém vários ensinamentos relevantes para a situação atual do país:

1- Crescer exige políticas governamentais com este objetivo: o crescimento e as transformações estruturais associadas ao crescimento de uma economia como a brasileira não são espontâneos. O governo militar de 1964 modernizou a agricultura através da adoção de crédito subsidiado em larga escala, preços mínimos e estoques reguladores: "Estas políticas, que viabilizaram a agricultura comercial e estimularam sua modernização, foram complementadas por um apoio maciço à pesquisa agrícola liderada pela Embrapa... essencial para sua modernização".

2 - Crescer exige políticas econômicas que mudam na medida em que a realidade muda. As políticas do governo fizeram com que a produção agrícola desse um salto para frente, mas o custo não era sustentável. A segunda fase da modernização foi o desmantelamento, na década dos 90, das intervenções nos mercados agrícolas, inclusive da proteção da indústria nacional de maquinaria e insumos, a abertura da agricultura ao comércio internacional, a extinção dos institutos da era Vargas como IBC e IAA, que protegiam os incumbentes e impediam a inovação, e o apoio à pesquisa agrícola, Embrapa, Instituto Agronômico de Campinas, serviços de extensão rural e ótimas escolas públicas de agronomia. A agricultura brasileira se modernizou e se tornou uma força mundial.

(...)

A sofisticação das estratégias, instituições e ousadias que permitiram a transformação da agricultura brasileira contrastam com a rigidez das políticas macroeconômicas dos últimos 20 anos. O Plano Real e a tripé (superávits primários, metas de inflação com taxas de juros altas e taxa de câmbio flexível), adaptados para sair da hiperinflação dos anos 90 foram mantidos quando a realidade já era outra e a prioridade era reencontrar o caminho do crescimento rápido e sustentável. O contraste também ilumina a falta de foco das políticas governamentais no crescimento e de estratégia para alcançá-lo.

3. O mercado externo é essencial para o crescimento sustentado. O PIB brasileiro é menos do que 3% da economia mundial. O mercado externo é necessário para absorver aumentos de produção resultantes de aumentos de produtividade associados a novas tecnologias e equipamentos modernos. Investimentos em aumentos de produtividade só podem ser rentabilizados se o mercado absorver os aumentos de produção associados a aumentos de produtividade.

A agricultura se beneficiou da abertura ao mercado mundial, que ficou fechado para a indústria. Enquanto o agronegócio prosperava, a participação da indústria no PIB caia: de um terço do PIB nos anos 80 a 10% hoje. É um dos casos de desindustrialização mais rápido que se conhece, o que ajuda a entender o crescimento medíocre das últimas 4 décadas.

Abrir a economia, substituindo a proteção tarifária e não tarifária por uma taxa de câmbio competitiva é parte essencial de uma estratégia de crescimento de longo prazo. Com uma taxa de câmbio competitiva e abertura ao comércio internacional, a indústria poderia ter um desempenho similar ao da agricultura. Isto requereria um banco central que veja a taxa de câmbio como um preço que influencia o desenvolvimento do país, não um instrumento de combate à inflação.

4 - O setor público pode gastar bem com impacto alto. Em tempos recentes reduzir o gasto público passou a ser interpretado como uma estratégia de crescimento. É uma interpretação errônea. "Feeding the World" documenta uma gama de intervenções na agricultura que demonstram que o setor público pode gastar bem e o impacto positivo que isto tem. A Embrapa não é o único exemplo de gastos públicos com efeitos positivos. A Embraer não teria sido possível sem o ITA e sem o apoio governamental nos seus começos. Há uma longa lista de instituições públicas com efeitos positivos sobre a economia e a sociedade.

Não há dúvida que instituições e programas ineficientes e abusos da máquina estatal são problemas graves que devem ser corrigidos. Corrigir abusos e excessos no uso de recursos públicos é um desafio em todas as sociedades, até nas mais desenvolvidas. Não podem ser corrigidos instantaneamente por cortes cegos. Requerem consultores especializados em administração pública. Se faz com a ajuda de um Tribunal de Contas que se preocupa tanto com a eficiência com a qual recursos públicos são utilizados como com os aspectos contábeis e fiduciários do uso dos recursos e a despolitização da máquina estatal. Como assegurar a eficiência da máquina estatal e bons padrões tecnocráticos deve ser um esforço contínuo a ser aprimorado e uma prioridade de todos os governos.

5. Um estado eficiente requer funcionários qualificados. O livro também documenta o alto nível de capital humano da Embrapa e outras instituições que possibilitaram a transformação da agricultura brasileira. E assim nos lembra de que o funcionalismo público requer respeito e reformas de maneira contínua com uma visão de longo prazo, não cortes arbitrários.

Concluindo: "Feeding the World" nos permite entender a transformação extraordinária da agricultura brasileira. O livro nos dá uma compreensão mais profunda do desenvolvimento da economia brasileira e dos mitos econômicos que a mantém enjaulada.

 

Carlos Luque é professor da FEA- USP e presidente da Fipe.

Simão Silber é professor da FEA-USP

Roberto Zagha foi do Banco Mundial a partir de 1980, onde encerrou a carreira em 2012 como Secretário da Comissão sobre o Crescimento e o Desenvolvimento, e diretor para a Índia.