Valor econômico, v.20 , n. 4790, 11/07/2019. Opinião, p. A19

 

A metamorfose da política industrial

Jorge Arbache

11/07/2019

 

 

A política industrial está entre as mais ostensivas e também entre as mais controversas áreas da política econômica. E razões para isto não faltam, incluindo evidências de prejudicar a livre competição e o livre comércio, proteger grupos de interesse e promover concentração de renda. Embora controversas, governos de países de diferentes níveis de desenvolvimento e orientações políticas vêm se utilizando de políticas industriais com justificativas das mais variadas para apoiar setores e empresas domésticas, incluindo geração de emprego e renda, desenvolvimento tecnológico e segurança nacional.

Os defensores das políticas industriais, especialmente os dos países mais avançados, mostrariam pragmatismo ao incorporarem as transformações econômicas recentes às suas agendas de trabalho. Considere o apoio às empresas multinacionais e a priorização de setores com rendas de monopólio no comércio internacional. Exemplos notórios foram a promoção das indústrias aeroespacial, automobilística e de medicamentos. A agenda seguiria se adaptando e passaria a incorporar temas de interesse em cadeias globais de valor e temas estratégicos para as empresas multinacionais, como operações globais unificadas e fusões e aquisições, o que ajudaria a estimular uma sem precedentes concentração de mercados internacionais.

Mas as políticas industriais passariam por novas ondas de mudanças com o crescente protagonismo dos serviços na agregação de valor, o que alteraria para sempre o eixo daquelas políticas. Do foco original na produção de bens tangíveis, a política industrial passaria a priorizar os bens intangíveis; e do foco original em linhas de produção de bens, a política passaria a priorizar o desenvolvimento, a gestão e a distribuição de serviços. Temas como patentes, licenças, serviços digitais, serviços profissionais e financeiros, convergência e liberalização de serviços, compras públicas, dentre outros, ganhariam as atenções dos defensores de política industrial.

(...)

As políticas industriais experimentariam mudanças ainda mais contundentes com a emergência das plataformas digitais e das big techs, que passariam a ser o objeto de desejo dos defensores daquelas políticas. O rápido e crescente poder e concentração dos mercados digitais e a disputa por dominância entre poucas grandes empresas ensejariam tensos conflitos internacionais de política industrial. Temas de dados privados se combinariam com alegações de abuso de dominância de mercado e de manobras das empresas para evadir impostos corporativos e para escapar das jurisdições nacionais nos países em que operam, o que abriria outra frente de tensões. Mas o apoio às big techs ainda não seria o ponto culminante das políticas industriais contemporâneas.

De fato, o estímulo e o apoio ao desenvolvimento, difusão e adoção de certificações, protocolos e padrões técnicos e regulatórios manejados por entidades privadas são, provavelmente, as mais efetivas políticas públicas de defesa de interesses empresariais. Afinal, esses padrões são monopólios, demarcam o campo do jogo e praticamente determinam a participação de empresas e até mesmo de países em mercados globais. Tratam-se de sistemas operacionais e de telecomunicações, protocolos técnicos de produção e operação de robôs e máquinas ferramenta, protocolos de produção industrial e de e-commerce, sistemas de pagamentos, padrões e protocolos técnicos de transporte, comercialização e distribuição de bens e serviços, protocolos de mercados financeiros e de capitais, protocolos de avaliações de empresas e bancos, padrões fitossanitários, dentre outros.

As políticas industriais passaram, portanto, por metamorfoses profundas e foram muito além das medidas protecionistas e mercantilistas convencionais. Mas, a despeito da sofisticação das novas agendas, os seus objetivos finais seguiriam sendo basicamente os mesmos de outrora, porém, agora, com repercussões muito mais contundentes na competição e no livre comércio, na defesa de interesses setoriais e na distribuição da renda. Não seria exagero concluir que as políticas industriais contemporâneas, nas suas variadas nomenclaturas e manifestações, são as políticas econômicas mais influentes deste início de século XXI.

E a América Latina? Políticas industriais de proteção de mercado foram amplamente empregadas nas últimas décadas, mas a sua contribuição para a região é polêmica. A esta altura do nosso relativo atraso de desenvolvimento, e considerando o contexto de forte ativismo internacional de políticas industriais, é preciso reconhecer que políticas horizontais, como infraestrutura, já não serão suficientes para superar os desafios que nos aguardam. O caminho a seguir vai requerer a colaboração entre os setores público e privado para a identificação, planejamento, desenho e implementação de políticas que promovam atividades que acelerem o crescimento sustentado e a competitividade internacional, sempre dentro de um marco de transparência e governança.

Um caminho promissor é explorar o imenso potencial para agregar valor e internacionalizar setores em que a região já tem reconhecidas vantagens comparativas e empreendedores experientes, instituições especializadas e conhecimento acumulado. Estes setores incluem agronegócios, águas, bioeconomia, florestas, mineração e segmentos da indústria e dos serviços. Para avançar, será necessário focar em capacitação, desenvolvimento científico e tecnológico, negociações comerciais, parcerias estratégicas e na produção, gestão e distribuição de serviços avançados associados àqueles setores. O potencial de ganhos com o aumento da produtividade das pequenas e médias empresas e com a integração do mercado regional também deveriam fazer parte do mapa do caminho que nos levará a um melhor lugar ao sol na economia global.

 

Jorge Arbache é vice-presidente de setor privado do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e escreve mensalmente neste espaço