Valor econômico, v.20 , n. 4783, 02/07/2019. Legislação & Tributos, p. E2

 

Cinco anos do Marco Civil da Internet

Patrícia Helena Marta Martins

02/07/2019

 

 

Dezenas de nossas ações diárias acontecem on-line: a leitura de notícias; a comunicação com os amigos; a ida ao trabalho, de carro, bicicleta ou patinete, contratados por aplicativo.

Não foi sem razão que a internet despertou a atenção do direito. No Brasil, os princípios, direitos e deveres para o uso da internet foram regulamentados pela Lei Federal nº 12.965/2014, chamada de "Marco Civil da Internet", que entrou em vigor em 23 de junho de 2014.

Foram mais de dez anos de discussões legislativas e hoje o Marco Civil da Internet já completa cinco anos de vigência. Ao longo desse período, a jurisprudência nacional formou entendimentos sobre temas importantes na regulação da internet brasileira.

(...)

No que toca à responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet, houve divergência entre o que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vinha decidindo e o que o Marco Civil da Internet disciplinou.

O STJ enfrentou inicialmente o tema no Recurso Especial nº 1.193.764/SP, quando ainda não estava em vigor o Marco Civil da Internet. A Corte Superior afastou o regime de responsabilidade objetiva tanto pela ótica do Código Civil como pela do Código de Defesa do Consumidor.

Com base na premissa de que a fiscalização prévia do conteúdo não é atividade intrínseca do serviço prestado, entendeu que deveria ser aplicado o regime subjetivo de responsabilidade por descumprimento de notificação extrajudicial (notice and takedown). De acordo com aquela posição pré-Marco Civil da Internet do STJ, caso o provedor fosse notificado extrajudicialmente pelo usuário para remoção de conteúdo e assim não agisse, poderia ser considerado responsável civilmente pelos danos.

Como essa posição impunha aos provedores de aplicações de internet obrigação não prevista em lei (remover conteúdos sempre que notificados extrajudicialmente, realizando juízo de valor sobre eles) e gerava conflito entre preceitos constitucionais, o assunto foi levado ao Supremo Tribunal Federal (STF). A questão está sendo discutida via o Tema nº 533 de repercussão geral, pendente de julgamento.

Com a vigência do Marco Civil da Internet, a regra geral do regime de responsabilidade civil do provedor de aplicação de internet passou a ser condicionada ao descumprimento de ordem judicial específica.

Atenta à introdução do novo regime legal, a jurisprudência passou a aplicá-lo imediatamente. Em 2017, quando chegou o primeiro caso cujos fatos ocorreram após a vigência do Marco Civil da Internet, o STJ, no Recurso Especial nº 1.642.997/RJ, caminhou bem ao aplicar o regime de responsabilidade subjetiva por descumprimento de ordem judicial específica trazido pelo artigo 19 da Lei nº 12.965/2014.

Mesmo diante do entendimento pacífico do STJ, a constitucionalidade desse artigo 19 foi questionada sob o argumento de que seria incompatível com o Código de Defesa do Consumidor, circunstância que chegou ao STF via o Tema nº 987 de repercussão geral, também pendente de julgamento. Vale dizer, contudo, que inexiste antinomia real entre as normas, apenas um conflito aparente que se soluciona a partir dos critérios de especialidade e cronológico.

Com a proliferação das interações pessoais via redes sociais, passou-se também a discutir quais seriam os elementos necessários para localização de um conteúdo na internet, que fosse objeto de uma ordem judicial de remoção, por exemplo.

É nesse contexto que surgiu a importância da URL (Uniform Resource Locator), que nada mais é do que o endereço eletrônico (ou hiperlink) composto por uma combinação única de letras, números e caracteres - o clássico www, que permite a identificação precisa e inequívoca de um material específico entre os bilhares de conteúdos inseridos diariamente na internet. Ela funciona como o CPF de determinado conteúdo na web.

Desde meados de 2011, a jurisprudência do STJ exige da parte ofendida a indicação precisa do endereço eletrônico do conteúdo (leia-se URL específica) como requisito para impor ao provedor a remoção do conteúdo.

O Marco Civil da Internet positivou este entendimento, trazendo regra expressa no parágrafo primeiro do artigo 19 quanto à "identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente", para que se possa assegurar o cumprimento da ordem judicial de remoção com precisão cirúrgica.

Como identificar usuários na internet passou a ter, também, relevante importância.

Uma das primeiras decisões do STJ sobre o tema data de dezembro de 2010, no julgamento do Recurso Especial nº 1.068.904/RS. No recurso, o STJ reconheceu que, no ambiente virtual, haveria a possibilidade de identificação de usuários por meio da indicação dos endereços IP. E no mesmo sentido seguiram-se diversos outros julgados do STJ.

Essa posição já se encontrava em conformidade com o que mais tarde viria a ser consolidado pelo Marco Civil da Internet. A lei estabeleceu que provedor de aplicação de internet apenas está obrigado a armazenar endereços IP, data e hora de acesso à aplicação de internet pela qual é responsável pelo prazo de 6 meses.

O STJ permanece aplicando o Marco Civil da Internet no que toca aos dados de guarda obrigatória para fins de identificação de usuários, afastando pedidos de fornecimento de outros dados, como nome civil, RG ou endereço físico.

Há muito o que comemorar. Em um país onde se discute se "leis pegam ou não pegam", o Marco Civil da Internet tem sido, de um modo geral, bem aplicado pelos tribunais. Muito bom para o Brasil, que ganha em segurança jurídica com a aplicação da lei vigente e que, neste aspecto, promove um ambiente regulatório propício ao desenvolvimento econômico e tecnológico.

 

Patrícia Helena Marta Martins é sócia de TozziniFreire Advogados nas áreas de Tecnologia & Inovação, Direito do Consumidor e Contencioso

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