Valor econômico, v. 20, n. 4788, 09/07/2019. Opinião, p. A8

 

Para que serve o BNDES?

Venilton Tadini

Igor Rocha

09/07/2019

 

 

O BNDES nos últimos tempos tem sido a instituição que talvez mais tenha despertado controvérsias. Isto porque a sociedade pouco sabe da importância dos bancos de fomento como uma ferramenta de desenvolvimento nacional, veículo de inserção em novos mercados e provedor de funding de longo prazo para setores que não encontram recursos no setor privado.

Parte do mercado, representada por instituições financeiras, incluindo alguns multilaterais, acredita que o BNDES inibiu o desenvolvimento do mercado de capitais uma vez que impediu, por praticar taxas muito abaixo do mercado e subsidiadas, a entrada de importantes instituições financeiras. Outra parte, representada especialmente por empresas industriais e de infraestrutura, argumenta que sem o BNDES as condições para realizar o investimento produtivo seriam mais árduas, provavelmente inviabilizando muitos projetos.

A verdade é que tais contradições apenas revelam o atual momento da economia quanto às controvérsias anteriormente descritas. Procura-se sempre a bala de prata para resolver problemas complexos, típicos de uma economia emergente como a brasileira. Infelizmente, a história do desenvolvimento econômico revela que saídas para questões desta magnitude remetem a construções conjuntas e da união de agentes contraditórios em busca de uma solução mais próxima possível da realidade, e não da ideologia. Como certa vez mencionado por Roberto Campos, "a contradição é privilégio dos governos realistas". Com esse pensamento, convergiu com Ignácio Rangel - que possuía pensamento reconhecidamente oposto - em relação à necessidade de criação de um órgão para financiamento de longo prazo com poupança compulsória como o BNDE (1952).

Tal alinhamento, tanto à esquerda quanto à direita, ocorreu devido ao entendimento de que a infraestrutura é um setor de alta complexidade e precisa ter o direcionamento do Estado para ser perene no longo prazo. Trata-se de um setor que não pode crescer somente a reboque de gargalos uma vez que dita o crescimento da produtividade da economia e inserção competitiva do país em novos mercados. Em outras palavras, é um setor caracterizado pelo chamado investimento autônomo, aquele que cresce a frente da demanda. Ademais, o setor é marcado por especificidades únicas, como o longo prazo para o investimento, riscos consideráveis e dificuldades de mobilização do capital que configuram altas barreiras à entrada e saída.

Por essa razão, a atuação de instituições financeiras públicas (bancos de desenvolvimento e agências de fomento) deve ser vista como uma importante forma de corrigir fragilidades dos sistemas financeiros, particularmente em países emergentes. Além do Brasil, vários países desenvolvidos e em desenvolvimento mantêm bancos de desenvolvimento fortes, como Alemanha, China, Coreia do Sul, Espanha, Japão, México, França e Rússia. Outros tantos, como os EUA, possuem um aparato multifacetado de agências estatais dedicadas à inovação extremamente atuantes sem as quais uma vasta gama de empresas do chamado Vale do Silício não teriam surgido.

(...)

A despeito das críticas recentes, o banco é uma máquina de retornar valor ao Estado, ajudando na amenização da crise fiscal e fomentando políticas públicas. Por exemplo, dados recentes mostraram que o BNDES obteve o maior lucro líquido trimestral de sua história no primeiro trimestre de 2019, com a marca de R$ 11,1 bilhões - um crescimento de 436,7% em relação ao primeiro trimestre de 2018. O resultado se deve, principalmente, à venda de ações de empresas, com destaque para Petrobras, Fibria, Vale e Rede. Isso mostra que a alocação dos recursos do banco gerou muito valor. Mesmo no setor privado, é difícil achar players que tenham tido tal desempenho.

Assim, embora seja desejável, pelo princípio da eficiência, remanejar para a iniciativa privada ações e serviços onde exista competência e interesse para sua atuação, é arriscado crer que somente o setor privado conseguirá prover e que o investimento privado será a solução para todas as questões de investimento do país, seja de longo prazo como na infraestrutura, seja de inovação. É importante compatibilizar a atuação do BNDES em setores de maior risco e onde há carências de cobertura por agentes privados, como, por exemplo, mobilidade urbana e ferrovias. Estes, ao redor do mundo, não se desenvolvem sem a presença do Estado, muitas vezes potencializados pela contrapartida do financiamento. Há exceções? Sim, mas parece não muito crível utilizá-las como regras.

Embora a emissão de debêntures de infraestrutura tenha se expandido nos últimos anos, elas responderam por menos de 5% do montante de recursos anual necessário ao setor. Ademais, embora tais emissões tenham atingido um recorde no primeiro semestre de 2019, não adicionam nem 10% do que é necessário de investimentos no setor. Para o Brasil voltar ao mesmo estoque de infraestrutura que tinha no início da década de 80, seriam necessários investimentos anuais superiores a 5% do PIB por 25 anos. Por essa razão, a preservação dos recursos do PIS/Pasep para compor o orçamento do BNDES é essencial.

Diante da retração do PIB no último trimestre e da baixíssima atividade econômica atual, a atuação do BNDES tem de ser vista como central para recuperação da economia. Seja ajudando a desenvolver novos projetos - hoje muito escassos no setor de infraestrutura -, seja ajudando a estruturar concessões, parcerias público-privadas (PPP's) e privatizações, bem como, também a participação em setores que a inciativa privada fique acometida em participar e gerem claro valor ao país. Além disso, novos projetos deveriam ser casados com uma visão de funding pragmática.

Setores da infraestrutura possuem características distintas, muitas vezes acentuadas por atributos únicos de cada projeto, onde há maior e menor apetite ao risco e cuja viabilidade pode não necessariamente ser compensada proporcionalmente apenas por uma maior taxa de retorno. Com o inexorável surgimento de novos projetos no setor, serão necessárias todas as fontes possíveis para viabilizar novos investimentos. Estado e setor privado terão de andar juntos.

 

Venilton Tadini, presidente-executivo da Abdib, é economista e mestre em economia pela FEA-USP, ex-diretor do BNDES, ex-diretor da Secretaria do Tesouro e ex-presidente do Banco Fator.

Igor Rocha é diretor de Planejamento e Economia da Abdib, economista e PhD pela Universidade de Cambridge. Foi co-fundador da Cambridge Society for Social and Economic Development.