O Estado de São Paulo, n. 45813, 24/03/2019. Internacional, p. A14

 

Ex-diplomata diz que Brasil ganhou confiança dos EUA

Beatriz Bulla

24/03/2019

 

 

Thomas Shannon, ex-embaixador americano em Brasília, elogia aproximação entre os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump

Diplomacia. Shannon: aproximação boa para os dois países

A visita do presidente Jair Bolsonaro ao americano Donald Trump foi bem-sucedida para os dois lados e mostrou um aumento no nível de confiança dos EUA no Brasil. A avaliação é de Thomas Shannon, que foi o terceiro na hierarquia do Departamento de Estado até 2018 e embaixador dos EUA no Brasil de 2010 a 2013.

Para Shannon, que hoje é conselheiro de política internacional do escritório Arnold & Poter, as concessões feitas pelo Brasil são pequenas perto da aliança formada por Bolsonaro com Trump. “Se você olhar todas as coisas juntas – a OCDE, o status de aliado preferencial fora da Otan, o acordo de salvaguardas tecnológicas –, isso significa muito para o Brasil em termos de nível de confiança entre os dois países em áreas sensíveis”, afirmou Shannon ao Estado.

O ex-diplomata esteve envolvido na negociação com o Brasil no primeiro texto sobre salvaguardas, em 1999. O acordo, que permite o uso comercial da Base de Alcântara, no Maranhão, é classificado por ele como um “grande negócio”. “Naquela época, a ideia de cooperação no lançamento espacial com o Brasil era realmente controvertida dentro do governo americano. A resolução bemsucedida exigiu uma decisão do Conselheiro de Segurança Nacional da época e do presidente Bill Clinton”, conta.

O texto do primeiro acordo, assinado no governo de Fernando Henrique Cardoso, foi rejeitado pelo Congresso brasileiro por ser considerado uma perda de soberania do Brasil. O novo acordo começou a ser costurado no governo de Michel Temer, em junho, e foi assinado na visita de Bolsonaro aos EUA.

“Eu acredito que Bolsonaro pode ter crédito pelo acordo de salvaguardas, é algo que requer uma visita presidencial. Do lado dos EUA, como há 20 anos, exigia uma decisão do Conselheiro de Segurança Nacional e do presidente”, disse Shannon, que dá créditos ao sucesso da visita ao embaixador do Brasil nos EUA, Sérgio Amaral – que deve ser substituído nos próximos meses.

Shannon lembra que havia afinidade e interesse intelectual entre Clinton e FHC. Entre Bolsonaro e Trump, segundo ele, a convergência é de visão política. O sucesso do bom relacionamento entre eles, porém, vai depender do quanto isso se traduz no trabalho de ambas as equipes. Shannon menciona que Lula e George W. Bush, por exemplo, se davam bem, mas o PT e os republicanos desconfiavam uns dos outros.

O interesse imediato dos EUA na aproximação com o Brasil, de acordo com o ex-diplomata, é ter um aliado de peso nas políticas contra Nicolás Maduro, na Venezuela. Na Casa Branca, Bolsonaro modelou o discurso para deixar em aberto as opções militares, assim como Trump. Shannon avalia que a “subida de tom” é uma estratégia não só de alinhamento com os EUA, mas uma forma de marcar posição perante outros países da região.

No médio prazo, segundo Shannon, os americanos também procuram fortalecer os governos de centro-direita da região. “Os EUA têm uma preocupação imensa com a crise da Venezuela. Os países da América Latina levaram muito tempo para perceber a seriedade disso. Mas os EUA também estão olhando para a situação da região agora, onde temos governos de centro-direita em vários países. O governo Trump vai querer fortalecer essa tendência e replicá-la na região.”

O Brasil teve de fazer concessões para conquistar o que os diplomatas consideraram seu maior trunfo: o endosso à candidatura do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Para isso, os EUA exigiram que o Brasil abra mão do tratamento diferenciado que possui na Organização Mundial do Comércio (OMC). Shannon acredita que a concessão é pequena, perto do alinhamento que o Brasil conseguiu com os EUA.

Segundo Shannon, o apoio à OCDE é uma forma de facilitar as reformas em países com “pensamento semelhante”. Ele elogiou a designação do País como aliado preferencial fora da Otan. “O aliado extraOtan foi uma jogada inteligente dos EUA. Coloca os militares brasileiros na linha de frente para a aquisição de armas e alinha nossos militares em outras áreas importantes”, afirmou.

O ex-embaixador minimizou o fato de o Brasil não ter saído com conquistas comerciais com os americanos. De acordo com Shannon, o governo Trump tem feito da negociação comercial o pronto principal de diálogo com países sempre que quer ganhar mais na relação comercial. “Não é uma surpresa, considerando a maneira como o atual governo dos EUA vê o comércio”, afirmou.

Aliança

“Se você olhar todas as coisas juntas – a OCDE, o status de aliado preferencial fora da Otan, o acordo de salvaguardas tecnológicas –, isso significa muito para o Brasil em termos de nível de confiança”

Thomas Shannon

EX-EMBAIXADOR DOS EUA NO BRASIL

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Governo brasileiro dá um passo atrás

Welber Barral

Wagner Parente

Edgard Viera

24/03/2019

 

 

No documento assinado ao fim do encontro entre Donald Trump e Jair Bolsonaro, o presidente americano afirma ser favorável ao início do processo de acesso do Brasil à OCDE. Bolsonaro concorda que o Brasil “começará a abrir mão do tratamento especial e diferenciado (TED) nas negociações da OMC”. Mas o que significa essa forma de tratamento no âmbito da OMC?

As chamadas disposições de TED são uma série de cessões a países em desenvolvimento e de menor desenvolvimento relativo contidas nos acordos da OMC. Algumas das principais disposições relativas ao TED estão determinadas na chamada “Cláusula de Habilitação”, aprovada no fim da Rodada Tóquio (1979). O Brasil sempre foi um grande defensor dessas disposições e também um grande beneficiário.

Um exemplo de vantagem para o Brasil é a possibilidade de fazer parte dos Sistemas Gerais de Preferência (SGP), que possibilitam que determinados produtos de países em desenvolvimento acessem o mercado dos países outorgantes com melhores tarifas sem reciprocidade. O Brasil pode se beneficiar dos SGPs de importantes mercados. Com base apenas no programa americano, o Brasil exportou US$ 2 bilhões em produtos em 2015 e, desde então, esse número aumentou. Abrir mão do TED significaria deixar de ter acesso a esse importante benefício para os exportadores brasileiros.

Outro benefício do TED na OMC é a possibilidade de concluir acordos preferenciais com outros países em desenvolvimento sem ter de liberalizar parte do comércio. Essa foi a base, por exemplo, para a conclusão dos acordos do Mercosul com a Índia e a União Aduaneira da África Austral (da qual faz parte a África do Sul), parceiros com os quais o Brasil teve importantes superávits comerciais nos últimos anos. Abdicar do TED significaria a impossibilidade de levar a cabo negociações futuras nessas mesmas bases, o que, certamente, aumentará a resistência política a essa forma de inserção comercial.

O TED também é a base para que os países em desenvolvimento tenham mais tempo para implementar acordos e decisões aprovados na OMC. O Brasil vem se beneficiando dessa extensão, por exemplo, para postergar a total implementação do Acordo de Facilitação de Comércio e o fim da concessão de determinados subsídios à exportação de produtos agrícolas, conforme definido no Pacote de Nairóbi.

Em suma, as disposições com base no TED têm sido fundamentais para que o Brasil e outros países em desenvolvimento possam participar do sistema multilateral de comércio da OMC. Eventuais cessões devem ser específicas e manter as flexibilidades supracitadas, que são importantes vitórias dos países em desenvolvimento no ainda desigual sistema multilateral de comércio.

A entrada na OCDE pode trazer benefícios ao Brasil e sinaliza o compromisso no longo prazo do País com uma economia transparente e preparada para receber investimentos estrangeiros. Mas chama atenção um fato curioso na proposta americana: por que o mesmo trade-off não foi exigido em outros casos de acessão à OCDE? México e Coreia do Sul, por exemplo, continuam se beneficiando de disposições de TED na OMC e passaram a ser membros da OCDE. A decisão de aceitá-lo pode terminar limitando o espaço de política comercial para o Brasil no curto prazo e nos coloca em posição de desvantagem frente às economias emergentes que não terão as mesmas restrições, em especial, Índia e China.

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Crucial para melhorar o ambiente de negócios

José Augusto C. Fernandes

24/03/2019

 

 

O compromisso de Donald Trump de apoiar a adesão do Brasil à OCDE retira um obstáculo importante à entrada do País no grupo. Para fazer parte da OCDE, qualquer país precisa ser aprovado por consenso pelos 35 membros e, no momento, a organização enfrenta dificuldades para decidir se inicia o processo de adesão em razão do elevado número de candidatos e do receio do impacto das adesões na coesão do grupo.

Ao jogar um holofote sobre o tema, o apoio americano gerou questionamentos sobre as vantagens da entrada na OCDE e as concessões a serem feitas pelo Estado brasileiro. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) apresentou a adesão do Brasil na lista de suas 42 propostas para a eleição de 2018 e considera que esse processo poderá fortalecer a agenda de reformas domésticas, a modernização institucional, a melhor governança e o alinhamento do sistema regulatório às melhores práticas internacionais. Tais avanços, porém, exigirão mudanças com implicações para a economia brasileira e para o setor produtivo.

A OCDE não tem o poder de sanções da OMC. Sua forma de indução é feita por meio de padrões, modelos e recomendações. A instituição exerce grande influência na agenda de fóruns e de outros organismos internacionais. A organização tem uma dinâmica capaz de antecipar tendências e enfrentar problemas que ainda estão em desenvolvimento. Ser membro significa participar da construção do consenso em torno de regras que influenciarão o ambiente mundial em que as empresas operam. Isso é muito relevante para o Brasil.

O Brasil já tem uma participação ativa na OCDE. Dado o fato de que mais de 30 instrumentos estão em fase de revisão, iniciaremos o processo de adesão com 107 dos 240 instrumentos normativos da organização. No entanto, não temos poder de voto nem influência sobre sua agenda política.

O fato de o Brasil ter bom grau de adesão aos instrumentos da OCDE não significa que o conjunto de reformas que o País deverá adotar seja pouco desafiador. O processo de entrada é crítico. É nessa etapa que os comitês apontam a distância entre as normas do país e os padrões da OCDE. Com o setor público e o privado sob “olhos de lince”, a OCDE negocia e induz a realização de reformas.

É razoável esperar recomendações para atacar problemas conhecidos do ambiente de negócios do Brasil, como a tributação, questões regulatórias e dimensões da política industrial e de comércio exterior. Pesquisas mostram que 84% das orientações de política defendidas pela OCDE convergem com aquelas defendidas pelo governo brasileiro. Em 4% dos casos, não há incompatibilidade, mas existem restrições quanto aos objetivos dos instrumentos da OCDE. Em 12% dos casos, há incompatibilidade e discordância da orientação definida pela organização.

Desde 2008, a CNI integra o Business Industry Advisory Comittee, um mecanismo da OCDE de participação empresarial. O setor privado acompanha temas de tributação, recursos naturais, crédito às exportações, inovação e mudança de clima. Para a indústria, faz mais sentido participar da formulação do que ser apenas receptor de regras que passarão a moldar as legislações internacionais.

Ao entrar na OCDE, o Brasil ainda se beneficiará dos sinais a serem emitidos do seu comprometimento de longo prazo com reformas econômicas e boas práticas internacionais, reforçando o processo de integração à economia mundial e aumentando a sua capacidade de atrair investimentos. Entrar na OCDE não elimina a capacidade de cometermos erros em políticas públicas, mas cria um sistema em que estarão mais presentes sinais de alerta para que os evitemos.