O globo, n. 31344, 01/06/2019. País, p. 4

 

Evangélico no supremo

Marco Grillo

Carolina Brígido

01/06/2019

 

 

Após propor pacto, Bolsonaro critica STF e defende um religioso para a Corte

Ao participar de convenção evangélica realizada em Goiânia, o presidente Jair Bolsonaro criticou o Supremo Tribunal Federal (STF) por estar “legislando” na questão da criminalização da homofobia . Ele sugeriu, ainda, que cogita nomear um evangélico para a Corte. Para juristas, preferência religiosa não pode ser fator determinante na escolha.Na mesma semana em que propôs um pacto entre Executivo, Legislativo e Judiciário e elogiou o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, o presidente Jair Bolsonaro acusou ontem a Corte de legislar. Ele também defendeu que pelo menos um dos 11 ministros do tribunal seja evangélico. As declarações de Bolsonaro foram dadas ao participar da Convenção Nacional das Assembleias de Deus

Madureira, em Goiânia. O agrado ao público evangélico ocorre no momento em que parlamentares ligados ao segmento fazem oposição à proposta do governo de ampliar a concessão de porte de armas no país. Bolsonaro falou do tema ao criticar a possibilidade de o Supremo enquadrar a homofobia como crime de racismo. Já há maioria no STF a favor da criminalização da homofobia, mas o julgamento foi interrompido e deverá ser retomado na semana que vem. —O Supremo Tribunal Federal agora está discutindo se homofobia pode ser tipificada como racismo. Desculpem, ministros do Supremo Tribunal Federal, a quem eu respeito, e jamais atacaria um outro Poder. Mas, ao que parece, estão legislando. O Estado é laico, mas eu sou cristão. Como todo respeito ao Supremo Tribunal Federal, existe algum, entre os 11 ministros, evangélico, cristão assumido? Não me venha a imprensa dizer que quero misturar Justiça com religião. Será que não está na hora de termos um ministro do Supremo Tribunal Federal evangélico? —disse Bolsonaro, sendo aplaudido. A primeira cadeira a ser preenchida por Bolsonaro no STF será, provavelmente, a do atual decano, Celso de Mello. Ele vai se aposentar em novembro do ano que vem, quando completa 75 anos. No início do mês, Bolsonaro havia dito que o ministro da Justiça, Sergio Moro, preencheria a vaga em 2020, mas depois recuou dizendo que não há nenhum acordo fechado para a nomeação. Moro é católico.

Ministros reagem

Procurado para repercutir a fala de Bolsonaro, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, lembrou que o Estado é laico. Ele considerou o discurso um “arroubo de retórica”, parte do direito à liberdade de expressão. —Não sabemos se alguém professa o Evangelho. Temos católicos e dois judeus (Luiz Fux e Luís Roberto Barroso). Mas o importante é termos juízes que defendam a ordem jurídica e a Constituição. O Estado é laico. O discurso foi um arroubo de retórica, algo permitido numa democracia, em que é assegurada a liberdade de expressão — ponderou, antes de provocar Moro. — Não se sabe se ele é evangélico, mas quem sabe? Talvez ele se converta agora. O ministro Alexandre de Moraes também reagiu à fala presidencial. Após almoço no Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), ele afirmou ao G1 que a Corte não legislou quando enquadrou a homofobia como crime de racismo.

— Não há nada de legislar. O que há é a aplicação da efetividade da Constituição, protetiva de uma minoria que no Brasil sofre violência tão somente por sua orientação sexual.

Nas pautas relativas a costumes, o STF tem decidido a favor das minorias. Muitas vezes, essas decisões contrariam conservadores —hoje representados pela agenda do Palácio do Planalto.

Almoço na estrada

No retorno do evento na igreja, Bolsonaro almoçou com caminhoneiros em uma churrascaria na na beira da estrada, em Anápolis (GO). Ele afirmou que vai insistir na estratégia de não "lotear" os cargos de primeiro escalão do governo e que a única possibilidade de haver mudança é caso o “seu mandato seja cassado". Em tom bastante informal, o almoço foi repleto de perguntas de caminhoneiros, que estavam na mesma mesa que o presidente. Ao longo da conversa, Bolsonaro procurou tratar de temas de interesse da categoria, que demonstrou apoio a ele na campanha eleitoral, e chegou a estimular um motorista a solicitar o porte de arma. Em outros acenos aos caminhoneiros, Bolsonaro disse que já construiu um entendimento com o ministro da Justiça, Sergio Moro, para o fim dos radares móveis, controlados pela Polícia Rodoviária Federal, e ressaltou que vai mandar ao Congresso, na semana que vem, um projeto de lei estendendo a validade da Carteira Nacional de Habilitação para dez anos.

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Para especialistas, escolha deve ser por saber jurídico

Dimitrius Dantas

01/06/2019

 

 

Juristas afirmam que preferência religiosa não pode ser preponderante na indicação de ministros do SupremoTribunal Federal

‘Será que não está na hora de termos um ministro do Supremo Tribunal Federal evangélico?’

Presidente Jair Bolsonaro, ao participar da Convenção Nacional das Assembleias de Deus Madureira

Apreferência religiosa não pode ser preponderante para a escolha de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), como sugeriu o presidente Jair Bolsonaro ontem. Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO, a composição da Corte deve levar em conta o saber jurídico e a independência dos magistrados, não suas visões pessoais. Para Rubens Glezer, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a fala de Bolsonaro vai de encontro com a crítica do presidente ao ativismo do Judiciário, que estaria ocupando o papel do Legislativo em alguns temas, como a criminalização da homofobia. — Se o Supremo está errado porque legislou, a solução seria colocar pessoas para evitar que legislasse. O que ele quer, aparentemente, é que continue legislando. Desde que seja com decisões que ele esteja de acordo —afirmou o jurista. Professor da Universidade de São Paulo (USP), Dircêo Torrecillas Ramos afirmou que a indicação para o Supremo deve colocar em primeiro lugar o notório saber jurídico:

—Se alguém vai para o Supremo, tem que decidir de acordo com a Constituição. A posição pessoal vale, mas o que vai defender é a lei. Tem que decidir de acordo com o Direito, não com a a preferência religiosa. A independência dos juízes também é destacada por Glezer. Para o professor da FGV, o ideal é que valores pessoais não afetem as decisões dos ministros. —A legitimidade do cargo vem disso, de que a interpretação do Direito não possa ser afetada.

Diversidade

Já Ramos afirmou que Bolsonaro tem certa razão ao afirmar que o STF legislou ao equiparar a homofobia ao racismo, que é inafiançável e prevê uma pena maior. O professor da USP também destacou a importância de que o STF apresente a mesma diversidade que a população. Ele ressaltou que indicações recentes que tiveram impacto na representatividade do tribunal foram reconhecidas pelo seu saber jurídicos e independência, como Ellen Gracie, a primeira mulher a ser ministra do STF, e Joaquim Barbosa, o primeiro negro.

— A indicação é pelo que a pessoa sabe da lei, pode ser de qualquer religião — disse.