Correio braziliense, n. 20452, 20/05/2019. Opinião, p. 11

 

Santa Irmã Dulce dos Pobres

José Sarney

20/05/2019

 

 

O papa Francisco decidiu, no dia 13 de maio, formalizar o reconhecimento de um segundo milagre de Irmã Dulce. O cardeal Angelo Becciu, prefeito da Congregação da Causa dos Santos, publicará o decreto que a declarará santa e, no consistório convocado para o dia 1º de julho, em cerimônia solene de canonização, a proclamará santa. Santa Irmã Dulce dos Pobres.  Frágil como uma pétala, débil como uma folha levada ao vento, mas plena de bondade, lutando até para respirar, lutando sempre pela sua grande causa, que era a causa dos pobres. Foi essa a santa que eu conheci.

Os santos buscam a santidade, seja diretamente, como Santa Terezinha, seja indiretamente, como São Francisco de Assis — para usar exemplos caros à Irmã Dulce. Essa via é um caminho de sacrifício, e Deus os põe à prova.

Irmã Dulce nos deu o exemplo da caridade e da virtude esquecida. A sociedade capitalista gera valores materiais e negligencia os valores espirituais. Irmã Dulce era uma tocha permanente, que brilhava para lembrar que não podemos ficar, somente, no usufruto dos nossos bens, sem pensar no universo que nos rodeia, nos miseráveis, nos pobres, nos deserdados. Nunca deixou, nunca abandonou a sua fé e a sua crença na sua religião. Jamais se deixou envolver por qualquer outro chamamento de natureza política, ou de natureza material, ou de qualquer outra natureza. Ela sempre foi o que ela é: uma santa.

Ela era o cristianismo sem adjetivos, era uma esmoler dos doentes. Filha do coração de Cristo, essa mulher era uma força da sua fé. O grande amor de Deus fez com que, no Brasil, tenha nascido e vivido criatura tão boa, das melhores almas da humanidade.  Irmã Dulce era uma flor de amor e de bondade, esse desejo de ser um pedaço de Deus nas ruas de Salvador da Bahia. Doce como os santos, santa como os profetas.

Eu tinha conhecimento da obra social de Irmã Dulce. Sabia da verdadeira abnegação dessa alma inigualável. A comunhão do nosso espírito consolidou-se quando a conheci pessoalmente, em Salvador, como presidente. Vi, então, como dizem os clássicos, “de olhos vistos”, a ação de uma mulher de físico frágil a conduzir com espírito forte uma das obras mais delicadas a que um ser humano pode se dedicar — a integral, gratuita e despojada de vaidades ajuda ao irmão pobre e despossuído.

Visitei-a sempre, algumas vezes no anonimato. Vi seu sofrimento e, ainda hoje, me recordo com que emoção, poucos dias antes de ela falecer, eu tive a oportunidade de, olhando-a naquele sofrimento, no que não era cama — o seu leito era quase uma cadeira —, para lhe prestar uma homenagem, lhe dizer: “Eu sou indigno de fazer outra coisa, senão de lhe beijar os pés.” Ali, eu beijei os pés de Irmã Dulce, ajoelhado.

A amizade que tínhamos um pelo outro era nutrida de nossos sentimentos comuns de amor próximo e só fez se consolidar com o passar dos anos, em benefício maior da parte que me toca, visto que a minha alma se engrandece na memória de alguém tão pura, como enriquecia, ontem, no convívio com uma pessoa tão abnegada ao próximo.

A decisão de Irmã Dulce em voltar sua vida para o amar e o servir aos pobres foi a materialização da luz que iluminava sua alma. O espírito de Irmã Dulce simplesmente se corporificou naquele físico tão franzino. Ela foi uma dádiva do Criador aos brasileiros em geral, como exemplo de vida, e ao povo de Salvador, em particular, como presença solidária. Foi um anjo de bondade inigualável do Brasil que pousou nas terras da Bahia e manteve em vida — e que nos legou ao partir — o ensinamento cristão do “amai-vos uns aos outros”.

Em 1988, indiquei nossa Irmã Dulce para o Prêmio Nobel da Paz. Não estava somente atestando preferência e escolha pessoais, eu expressava o que habitava no fundo da alma brasileira. Irmã Dulce era um símbolo, plena de bondade, as pequeninas mãos carregando tão pesado fardo, como seja a prática da caridade e do amor, lutando pela paz do corpo e rezando pela salvação do espírito.

Exemplo mundial de caridade, serviu Irmã Dulce com sua vida para o alívio do sofrimento dos mais pobres entre os mais pobres. Débil de saúde, mas muito forte de alma, deu um exemplo extraordinário de bondade e fé com suas obras sociais, sua projeção humana no Brasil inteiro. Tinha a paz cristã, a grande paz da vida dedicada ao próximo e aos mais necessitados.

Visitei-a quando se encontrava em seu leito de agonia. Impressionou-me seu semblante sereno, que transmitia uma grande paz interior de quem — mais do que se voltava para os braços do Criador — levava a consciência tranquila de ter sido cristã, de amar e de servir ao próximo.

Quantas vezes eu ouvi sua sobrinha, Maria Rita, me dizer que o Vaticano pedia mais um milagre da Irmã Dulce e eu dizia: eu sou testemunha, ela já me fez mil milagres. Ao deixar o governo, eu ia sair, ia descer a rampa, numa situação difícil. Então, antes de sair, reuni minha família, minha mulher, meus filhos e não sei por que coloquei um lenço no bolso para as lágrimas.

E disse a todos que estavam ali: “Olhem, vocês se preparem. Eu cumpri com o meu dever, fiz tudo o que eu podia fazer. Agora, vou descer a rampa do Palácio” — na frente, havia uma multidão incalculável. “Metade vem para aplaudir o candidato que vai tomar posse, a outra metade vem para vaiar o candidato que vai tomar posse, mas todas as duas correntes vêm para me vaiar.” Peguei na mão da minha mulher e dos meus filhos e desci a rampa.

Não sei por que, ao descer, senti ao meu lado alguém. Olhei, procurava quem estava ali, e era a Irmã Dulce. Tirei o lenço e, então, sacudi o lenço como quem se despedia. E aí, de repente, aquela multidão, de um lado e de outro, que vinha para me vaiar, começou a me aplaudir. Eu não sabia nem como. Vi as pessoas chorarem. E eu dizia: é um milagre da Irmã Dulce!

» JOSÉ SARNEY

Ex-presidente da República