Correio braziliense, n. 20454, 22/05/2019. Mundo, p. 12

 

No banco dos réus

Rodrigo Craveiro

22/05/2019

 

 

Argentina » Tribunal julga Cristina Kirchner por associação ilícita e fraude em 61 contratos de obras públicas na província de Santa Cruz. Ex-presidente denuncia "cortina de fumaça" para desviar o foco da crise econômica. Especialistas veem impactos políticos

A “Senhora” escutou a acusação impassível, sentada na última fileira do banco dos réus, em um dos tribunais de Comodory Py, no bairro de Retiro, em Buenos Aires. Durante as três horas da primeira audiência oral no caso Vialidad, que envolve fraude em 61 licitações de obras de infraestrutura na província de Santa Cruz, a senadora e ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner (CFK), 66 anos, evitou encarar Lázaro Báez, o empresário do ramo imobiliário a quem teria favorecido com a concessão de licitações de obras públicas estimadas em 46 bilhões de pesos (cerca de R$ 4,1 bilhões). Por várias vezes, olhou o celular e demonstrou incômodo. Do lado de fora da Corte, simpatizantes com faixas na cabeça, bandeiras e cartazes transformavam o início do julgamento em ato de campanha política — na sexta-feira, Cristina havia anunciado que será candidata a vice-presidente em chapa liderada pelo ex-chefe de gabinete Alberto Fernández. “Cristina Elisabet Fernández é acusada de ter participado de uma associação ilícita, na qualidade de chefe, com outros funcionários de diferentes partes do Estado”, afirma o documento de acusação lido ontem.

Antes da audiência, CFK tinha usado o próprio perfil no Twitter para se manifestar e denunciar uma “cortina de fumaça”. “Em algumas horas, começará em Comodoro Py um julgamento oral ao qual eu jamais deveria ter sido citada. Trata-se de um novo ato de perseguição, com um único objetivo: colocar uma ex-presidente opositora a este governo no banco dos réus em plena campanha presidencial”, escreveu. “Claramente não se trata de fazer justiça. Somente armar uma nova cortina de fumaça que pretende distrair os argentinos e as argentinas — cada vez com menos êxito — da dramática situação que vivem nosso país e nosso povo”, acrescentou, ao defender que “os julgamentos devem buscar a verdade”. Ela descartou ter feito qualquer intervenção nos expedientes administrativos das obras realizadas por Báez. Além de Lázaro Báez, também são acusados no caso Vialidad o ex-ministro do Planejamento Julio de Vido e o ex-secretário de Obras Públicas, José López, ambos detidos.

Em entrevista ao Correio, o cientista político e consultor argentino Gustavo Marangoni não demonstrou surpresa ante o fato de Cristina Kirchner classificar o próprio julgamento de “cortina de fumaça”. Ele lembra que a ex-presidente tem firmado esta posição desde o início do processo judicial, depois de abandonar o poder em 2015, e em sua autobiografia, intitulada Sinceramente. “Sem sombra de dúvidas, o oficialismo utilizará toda a questão jurídica  contra CFK e seus ex-colaboradores ao longo de toda a campanha até as eleições de 27 de outubro. Por sua vez, Cristina usará a crise econômica e suas consequências ao criticar o  presidente Mauricio Macri”, explicou.

Eleições

Para o cientista político e jornalista Gabriel Ziblat, subeditor de Política do diário Perfil, de Buenos Aires, o julgamento de Cristina Kirchner deve se arrastar por pelo menos um ano, sobretudo ante a quantidade de testemunhas arroladas no processo (160). Ele não descarta que o andamento do caso nos tribunais impacte o contexto político, ao qual a Justiça da Argentina está bastante atrelada.

Se CFK e Alberto Fernández vencerem as eleições, o caso Vialidad provavelmente será anulado pela Corte Suprema ou atrasado, mediante pedido de novas provas. Se Macri se reeleger, a causa deverá seguir seu curso”, comentou. Ziblat afirmou que, entre 2010 e 2015, uma auditoria descobriu que Santa Cruz recebeu 12% do orçamento nacional, mais do que Buenos Aires, a maior província do país. “Cerca de 80% das obras públicas de Santa Cruz foram conduzidas por Báez, um empresário que, depois da posse de Néstor Kirchner, criou uma empresa de construção que se tornou a mais importante da Argentina.”

O tribunal convocou outra sessão para a próxima segunda-feira, na qual seguirá com a leitura do expediente acusatório — o documento possui mais de 600 páginas. CFK responde a outros 11 casos. Em quatro deles, ela foi condenada à prisão preventiva. Os casos Hotesur e Los Sauces foram unificados e deverão ser julgados no fim deste ano. “Eles incluiriam a lavagem de dinheiro feita por Báez para devolver o capital aos Kirchner e às empresas hoteleiras e imobiliárias da gamília. O Estado agiu em benefício de um empresário sem experiência em construção. Há elementos suficientes para a condenação de Cristina”, opinou Ziblat.

Eu acho...

“A condenação de CFK não deverá ocorrer este ano, e há possibilidade de apelação. A imagem negativa da ex-presidente, em torno de 50%, concentra a opinião daqueles que não se conformam com o que foi o seu governo em termos de aparência institucional. Precisaremos ver se os eleitores indecisos penderão para a condição econômica como consequência da corrida cambial que começou em abril de 2018 ou a questão de caráter institucional.”

Gustavo Marangoni, 53 anos, cientista político, morador de Buenos Aires

A corrupção K

Saiba quais são os processos aos quais Cristina Kirchner responde

1- Dólar futuro

Situação: Em curso

Danos ao Estado em operações de câmbio do Banco Central.

2- Atentado à Amia

Situação: Condenada à prisão preventiva *

Por encobrir altos funcionários iranianos, acusados do atentado contra a Associação Mutual Israel, em 18 de julho de 1994, em Buenos Aires. O ataque deixou 84 mortos.

3- Caso Vialidad

Situação: Primeira audiência realizada ontem

Por associação ilícita e fraude em 61 licitações de obras públicas em Santa Cruz.

4- Los Sauces

Situação: Em curso

Por enriquecimento ilícito em imobiliárias e em hotéis.

5- Hotesur

Situação: Em curso

Por lavagem de dinheiro na Hotesur, empresa hoteleira da família.

6- Cadernos de corrupção

Situação:  Condenada à prisão preventiva *

Por subornos de empresários em licitações de obras públicas.

7- Pela descoberta de documentos históricos durante uma batida em sua residência

Situação: Em curso

8- Por subsídios irregulares no sistema ferroviário

Situação: Condenada à prisão preventiva *

9- Subsídios irregulares no sistema rodoviário

Situação: Em curso

10- Subsídios irregulares no transporte público

Situação: Condenada à prisão preventiva *

11- Superfaturamento na importação do gás natural liquefeito

Situação: Condenada à prisão preventiva *

12- Por uso irregular de aviões presidenciais durante sua gestão

Situação: Em curso

* A senadora Cristina Fernández de Kirchner não pode ser presa em virtude de sua imunidade parlamentar.