O Estado de São Paulo, n. 45837, 17/04/2019. Espaço aberto, p. A2

 

Os graves riscos da PEC do Orçamento impositivo

Maílson da Nóbrega

17/04/2019

 

 

A Câmara e o Senado aprovaram emenda constitucional que determina a execução obrigatória de emendas parlamentares de bancada e de dotações para obras e equipamentos. A rigor, a emenda chove no molhado.

De fato, pela Constituição de 1988 o Orçamento é impositivo. Mesmo assim, ele é tido como “autorizativo” pela Secretaria do Tesouro Nacional e por economistas, jornalistas, cientistas políticos e até parlamentares. Essa ideia, sem justificativa histórica ou institucional, inexiste onde as finanças públicas são levadas a sério. A Constituição (artigo 165, § 8.º) fala em previsão da receita e fixação da despesa (grifos nossos), ou seja, a receita é estimada e a despesa é determinada. Mas esse não é o foco deste artigo.

Lamentou-se o aumento da rigidez orçamentária. O Tesouro teria perdido a flexibilidade, isto é, o poder utilizado pelo Executivo, não previsto na Constituição, de executar o que lhe interessa. Ressalvamse o serviço da dívida pública, a partilha de receitas com Estados e municípios e os gastos obrigatórios com pessoal, Previdência, educação e saúde. Afora essa equivocada interpretação, a maneira como a proposta de emenda foi aprovada pelos deputados, em apenas duas horas, representou enorme irresponsabilidade.

Emendas à Constituição não podem ser feitas de maneira açodada. Menos ainda se a aprovação contiver, como parece, uma reação a um presidente da República que até agora não entendeu o papel que lhe cabe no presidencialismo de coalizão. Este pressupõe o compartilhamento do poder para formar uma base parlamentar coesa, que se comprometa a apoiar a agenda do governo. Não é necessariamente corrupção, como sugere o presidente Jair Bolsonaro.

Tais emendas não se submetem ao sistema de pesos e contrapesos proposto pelo barão de Montesquieu, o qual constitui a essência da separação dos Poderes: cada um deles (Executivo, Legislativo e Judiciário) está apto a conter abusos do outro, de modo que se harmonizem e se equilibrem. As

emendas são a única exceção a esse sistema, pois não estão sujeitas ao veto do Executivo. São promulgadas de modo unilateral pelo Congresso logo que aprovadas.

Por isso seu processo legislativo é mais lento e complexo. No Brasil exige-se aprovação em dois turnos em cada Casa do Congresso. Depois da passar pelo teste da admissibilidade nas Comissões de Constituição e Justiça da Câmara e do Senado, que se manifestam sobre sua conformidade à Constituição, a proposta de emenda precisa enfrentar uma tramitação mais longa que a de projetos de lei.

A tramitação obedece a interstícios, isto é, intervalos de tempo entre uma etapa e outra. As emendas costumam levar, assim, seis meses ou mais até sua aprovação final. A tramitação mais demorada reflete a necessidade de dedicar mais tempo à discussão ampla de seu objetivo e a sopesar custos e benefícios.

Outros países seguem processos mais rigorosos e cuidadosos, como os Estados Unidos, cuja Constituição de 1787 exige o quórum de dois terços (66,7%) de cada Casa do Congresso para alterá-la, maior do que a nossa Constituição, de três quintos (60%).

Aprovada a emenda no Congresso americano, é preciso que ela seja ratificada por três quartos das Assembleias Legislativas dos Estados. A maior complexidade deriva do modo como a Constituição de Filadélfia foi elaborada. Uma de suas grandes discussões foi em nome de quem ela seria aprovada, se do povo ou dos Estados, que gozavam de forte autonomia pelo Estatuto da Confederação, aprovado no ano seguinte ao da Declaração de Independência, de 1776. A solução de compromisso foi estabelecer que Câmara representava o povo e o Senado, os Estados.

Dada a lentidão do processo, a proposta pode ficar esquecida por muito tempo nos escaninhos das Assembleias. Foi assim na emenda pela qual a alteração dos subsídios dos parlamentares só entra em vigor na legislatura seguinte. O texto, aprovado pelo Congresso em setembro de 1789, só foi ratificado pelos Estados em maio de 1992, quase 103 anos depois.

Oriundo de raízes históricas distintas, o Brasil não precisa esperar mais de um século para concluir o processo de emendar a Constituição. Tampouco se justifica mudá-la em apenas duas horas. Trata-se de irresponsabilidade que traz grandes riscos para os cidadãos e para o País, que podem sofrer os efeitos negativos de emendas criadoras de incertezas e desequilíbrio fiscal.

Muitas das centenas de projetos de emenda constitucional (PECs) em tramitação tratam de matérias típicas de lei ordinária, que poderiam enfrentar o veto do presidente da República se viessem a incorporar custos excessivos às finanças federais e estaduais. É o caso da PEC que propõe equalizar, em todo o País, os proventos dos bombeiros. A base seria a maior delas, a do Distrito Federal, bem superior à observadas nos Estados menos desenvolvidos, desconsiderando as suas distintas capacidades de arrecadação.

Se apresentadas por meio de projetos de lei, tais proposições tenderiam a ser vetadas pelo presidente da República. Cabe lembrar, a propósito, que o veto não derroga os poderes do Congresso. Representa, na verdade, um pedido de reconsideração do ato legislativo pelas razões que o presidente expõe. Por isso o veto pode ser derrubado pela maioria absoluta dos votos dos deputados e senadores.

A aprovação relâmpago da PEC do Orçamento só foi possível porque os plenários da Câmara e do Senado revogaram, para o caso, os interstícios de votação e as demais etapas exigidas para sua aprovação. É preciso, assim, estabelecer amarras institucionais quanto aos prazos de tramitação. O Brasil não pode continuar sujeito à aprovação de emendas constitucionais sem a consideração adequada e responsável de sua justificativa e seus riscos.