Título: Drible na Lei de Licitações
Autor: Correia, Karla
Fonte: Correio Braziliense, 30/09/2012, Política, p. 10

Criado para facilitar as concorrências públicas das obras da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, o Regime Diferenciado de Contratações já é usado em 56% dos investimentos federais. Esse percentual pode chegar a 83%

Criado como um drible na legislação que rege as licitações do governo para agilizar o andamento de obras relacionadas aos eventos da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, o Regime Diferenciado de Contratações (RDC) ganhou corpo suficiente para transformar em regra o que era para ser exceção. Por meio de sucessivos contrabandos inseridos em medidas provisórias aprovadas pelo Congresso, hoje o guarda-chuva do RDC já abriga 56,5% dos investimentos previstos na Lei Orçamentária de 2012 para obras federais. Com os acréscimos pretendidos pelo governo para a área de educação — já aprovado pelo Legislativo — e para o Sistema Único de Saúde (SUS), esse percentual de obras que escapa à Lei de Licitações pode chegar a 83,3%.

Entre as principais mudanças em relação à regra atual para licitações, o RDC elimina a exigência de apresentação de projeto executivo para a obra antes da concorrência pública. Na chamada contratação integrada, prevista pelo regime, o governo apresenta aos licitantes apenas um projeto básico da obra. O orçamento do empreendimento, feito com base em preços de mercado já pagos em projetos semelhantes, é mantido em sigilo até o fim da licitação. A empresa vencedora é contratada para executar a obra por inteiro e entregá-la pronta para uso.

Outra alteração é que apenas a empresa que ganhar a licitação é exigida a apresentar os documentos comprovando a habilitação para executar o projeto. Quem quiser oferecer lances na concorrência poderá fazer parte de um cadastro de pré-qualificação de empresas interessadas em participar de licitações do governo.

A flexibilização da Lei de Licitações coleciona críticos. Para o professor do Departamento de Economia da UnB José Carlos Oliveira, o RDC equivale a um voo cego na administração de obras federais. "O principal argumento do governo é modernizar a Lei de Licitações, mas o que se vê aqui é que estão combatendo justamente os atos burocráticos que protegem o dinheiro público", avalia Oliveira. "A ideia inicial, de excepcionalidade, era aceitável, mas não há justificativa para essa extensão da validade das regras. Se o grau de realização de investimentos do governo é baixo, o problema é da 8.666 (Lei de Licitações) ou de má gestão?", questiona o especialista. "Flexibilizar essas regras assim, sem critérios, só vai tornar os projetos mais caros do que se prevê e abrir espaço para o benefício de grupos de empresas", argumenta Oliveira.

Algumas das mais importantes e caras obras da Copa do Mundo serão feitas por meio do RDC. O Aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, por exemplo, terá a pista de pouso ampliada com esse regime de contratação. A construção deve começar em janeiro.

Ações O rito abreviado de contratações é alvo de duas ações diretas de inconstitucionalidade (Adins) que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a extinção do instrumento. Em uma delas, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, argumenta que haverá comprometimento do patrimônio público se licitações e contratações de obras forem realizadas no formato estabelecido pela lei que criou o RDC e afirma que o princípio de igualdade de condições a todos os concorrentes não é respeitado no novo regime.

Gurgel ainda questiona a forma com que o RDC foi criado — por meio de uma emenda incluída na MP 527, editada para modificar a estrutura organizacional e as atribuições dos órgãos da Presidência da República e de ministérios. "Como a Lei 12.462/11, quanto aos dispositivos impugnados, é fruto de emenda parlamentar que introduz elementos substancialmente novos sem qualquer pertinência temática com aqueles tratados na medida provisória apresentada pela presidente da República, sua inconstitucionalidade formal deve ser reconhecida", diz o procurador-geral, no texto da ação. A Adin está sob a relatoria do ministro do STF Luiz Fux, que também analisa ação apresentada por partidos de oposição como o PSDB, o DEM e o PPS contra a criação do RDC na medida provisória. Na avaliação dos partidos, o relator da MP que criou o RDC, deputado José Guimarães (PT-CE), cometeu "abuso do poder de emendar", uma vez que a medida não tratava de licitações ou contratos públicos.

Autor das emendas que estenderam o RDC às obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do setor de educação, o deputado Pedro Uczai (PT-SP) já planeja a inclusão de mais um contrabando relacionado ao RDC. Desta vez, o foco será as obras do Sistema Único de Saúde (SUS). Novamente, o texto da medida emendada nada tem a ver com licitações. A MP 580 prorroga por 12 meses contratos com trabalhadores temporários firmados pelo Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec). "A MP é o principal ritual legislativo hoje e, por isso, tem sido o instrumento preferencial para essas mudanças nas regras de licitações", justifica Uczai. "Existem áreas estratégicas com obras que não podem esperar pelo tempo normal de maturação de uma lei. O RDC é uma forma de modernizar a Lei de Licitações. Não dá espaço para conluios, é mais transparente e rápido", defende o deputado.