O globo, n. 31361, 18/06/2019. Artigos, p. 3

 

Aspectos éticos da Lava-Jato

Luciano Benetti Timm

18/06/2019

 

 

A ética tem várias escolas. Analisaremos a questão sob o ponto de vista do pragmatismo e de como ele se diferencia do idealismo. O pragmatismo é uma escola de pensamento com raízes diretas, entre outros, no pensamento do filósofo americano Peirce, mas que pode encontrar suas origens na filosofia grega representada pela seguinte frase de Demóstenes: “Toda vantagem obtida antes é julgada à luz do resultado final.”

Na tradição de pensamento pragmático, não há sentido fazer distinção no plano das ideias, se ele não corresponde à prática. Foi uma escola bastante crítica do abstracionismo teórico, de modo que seria difícil se defender que a ética fosse encontrada em algum lugar da razão humana distante dos acontecimentos reais. Afinal, seria realmente ético, no exemplo idealista, delatar o amigo que praticou um crime?

Já no pensamento idealista, o comportamento correto poderia ser encontrado em algum local ideal, na razão pura, em um “imperativo categórico” que não admitiria ponderação alguma das circunstâncias concretas.

A neurociência e a psicologia comportamental vêm contribuindo bastante para esse debate ético entre pragmatismo e idealismo ao pesquisar a tomada de decisões no cérebro humano, demonstrando que a decisão humana é tomada no cérebro a partir de dois sistemas distintos, mas não absolutamente separados: o sistema 1 (intuitivo e rápido) e o sistema 2 (lento e racional). As convicções e princípios deliberativos estariam estocados em nosso sistema intuitivo e rápido, a permitir decisões rápidas do dia a dia nele baseadas; o sistema 2 refletiria mais detidamente as aplicações daquelas convicções em casos concretos, normalmente ponderando as consequências práticas.

E o que tem a ver isso com a Lava-Jato?

O filósofo Ortega Y Gasset cunhou a expressão: “O homem é o homem e a sua circunstância”.

Logo, não há como separar as decisões tomadas no âmbito da Lava-Jato das circunstâncias que a circundavam. Estava-se diante do maior escândalo de corrupção da história do mundo, ao que se tem notícia. Estavam envolvidos todos os partidos que representavam a coalizão que administrava o país há mais de dez anos e com todas as implicações que isso significa, justamente depois do que já se sabia do mensalão.

Mais do que isso, houve sinais divulgados ao público de inúmeras tentativas de se tentar barrar a operação.

Não estávamos na ocasião, como não estamos hoje, em um ambiente de normalidade institucional. Basta lembrarmos de Raymundo Faoro e sua obra “Os donos do poder”. O Brasil sempre foi dirigido por uma pequena elite tomadora de decisão, que está no poder há gerações e que age baseada numa lógica que não permitiu o desenvolvimento do país.

Se o bem maior era a República e o bem da nação, eticamente não se exigiria outra coisa de um virtuoso que não a de proteger o resultado da Operação Lava-Jato, dentro das regras vigentes; a punição dos envolvidos e sua retirada da vida pública, após o devido processo legal. Que, aliás, foi o que ocorreu, com a prisão de empreiteiros e políticos de diferentes partidos, que, ao que parece, ainda lutam para reverter esse resultado e voltar às velhas práticas no poder.

Alguns dirão que isso é pragmatismo, o que, diga-se de passagem, tem fundamentos filosóficos relevantes e não menos importantes nos dias de hoje do que o idealismo moral. Mas, justamente por isso, idealistas têm efetivamente o argumento de que as consequências não importam para a tomada de uma decisão moral e que o resultado não deveria importar. Provavelmente, estaríamos à beira do abismo da corrupção e dos desmandos que nos levaram infelizmente ao impeachment. Todavia, se autêntica, é uma crítica aceitável por um pragmático.

Mas o mais reprovável moralmente é observar pragmáticos — movidos apenas por interesses pessoais, profissionais ou políticos —agirem como se idealistas fossem, bradando pelo “estado democrático de direito” e suas “garantias fundamentais”, mas descurando que não há democracia sem respeito à privacidade e à intimidade. E tal atitude é condenável moralmente tanto para um pragmático, como para um idealista.